quarta-feira, 3 de junho de 2015

ALFABETIZAÇÃO NA ESCOLA DA PONTE


A Ponte não segue um sistema baseado em seriação ou ciclos e seus professores não são responsáveis por uma disciplina ou por uma turma específicas. As crianças e os adolescentes que lá estudam - muitos deles violentos, transferidos de outras instituições - definem quais são suas áreas de interesse e desenvolvem projetos de pesquisa, tanto em grupo como individuais. 

A cada ano, as crianças e os jovens criam as regras de convivência que serão seguidas inclusive por educadores e familiares. É fácil prever que problemas de adaptação acontecem. Há professores que vão embora e alunos que estranham tanta liberdade. Nada, no entanto, que faça a equipe desanimar. 

O sistema tem se mostrado viável por pelo menos dois motivos: primeiro, porque os educadores estão abertos a mudanças; segundo, porque as famílias dos alunos apóiam e defendem a escola idealizada por Pacheco. 

A Escola da Ponte, com nome oficial de Escola Básica Integrada de Aves/São Tomé de Negrelos, foi criada na década de 1970. Situa-se ao norte de Portugal, no Conselho de Santo Tirso em Vila das Aves. No período letivo de 2006/2007, havia em torno de 206 alunos matriculados do 1º ao 9º ano, e contava aproximadamente com 37 professores (orientadores educativos), três funcionários do setor administrativo, sendo um para cada agrupamento, quatro auxiliares educativos e uma gestora. Fundada na década de 1940, a instituição foi administrada por José Pacheco desde 1976 até a sua reforma recente. Nessa época, este educador iniciou um projeto pedagógico diferenciado que continua até os dias atuais. Por um período de 25 anos a Escola da Ponte foi uma escola primária. Em 2001, o Ministério da Educação de Portugal transformou-a em uma Escola Básica Iintegrada, incluindo o ensino fundamental e atendendo alunos de até 15 anos. Tudo isso, fruto de um processo de luta e conquistas dos sujeitos nela envolvidos e comprometidos com uma escola pública de qualidade. 

Focalizarei aqui o processo pedagógico alfabetizador, com vistas ao diálogo ao projeto emancipatório de escola e de sociedade, com o qual a escola vem se comprometendo ao longo de sua história. Para tanto, buscamos, além da observação, interlocutores que pudessem fornecer informações, indícios e pistas que ajudassem a compreender o processo vivido por esse projeto até então, e em especial, no sentido de poder defender a ideia de que a alfabetização é muito mais do que a codificação e decodificação de palavras e códigos, constituíndo uma prá- tica social, produto e produtora de cultura, no sentido freireano. Historicamente, as práticas escolares de alfabetização não vêm considerando os usos sociais de leitura e escrita da comunidade de origem das crianças/alunos. Tal fato contribui para o que Soares (1996) denomina como o fracasso da/na escola. É curioso, diz Soares (2003), que tenha ocorrido, em um mesmo momento histórico, em sociedades distanciadas tanto geográfica, social , econômica quanto culturalmente, a necessidade de reconhecer e nomear práticas sociais de leitura e de escrita mais avançadas e complexas que as práticas do ler e do escrever resultantes da aprendizagem do sistema de escrita. 

Nessa perspectiva, a língua não é um mero código para a comunicação. Ela é um fenômeno social, estruturado de forma dinâmica e coletiva, portanto, a escrita também deve ser olhada do ponto de vista cultural e social. Ao questionar esse caráter histórico dos processos de alfabetização, na qual se encontra presente uma das dimensões mais recorrentes e naturalizadas nos processos e práticas de alfabetização escolar, os métodos sintético, analítico ou misto, caracterizados por processos mecânicos e repetitivos, portanto, sem sentido para as crianças em processo inicial de apropriação da língua escrita, é que a Escola da Ponte adota como referência o Método Natural/Global de base freinetiana, o qual se assenta na atividade e na criação. De acordo com a literatura, o método natural vivenciado no aprendizado da língua e da gramática, preconizado por Freinet, é caracterizado pelo processo Visão Global.

A didática da alfabetização pauta-se em reflexões a partir da experiência.... inverso dos procedimentos adotados pelo método tradicional, pois para o autor, a atividade educativa tem como ponto de partida a expressão oral ou escrita das crianças. Tal compreensão põe em xeque a ideia de que as aquisições são aprendidas ou obtidas por meio do estudo de regras e leis, mas principalmente, pela experiência. Diz Freinet (1977) que estudar primeiro as regras e leis é colocar “o carro na frente dos bois”. As regras e leis são frutos da experiência, de outro modo não passam de fórmulas sem valor. Assim, Freinet (1977, p. 39) buscava explicação para diferenciar os métodos tradicionais dos naturais. Para ele existe uma diferença fundamental de princípio, sem a compreensão da qual todas as apreciações serão sempre injustas e errôneas: os métodos tradicionais são especificamente escolares, criados, experimentados e mais ou menos realizados por um meio escolar que tem as suas finalidades, os seus modos de vida e de trabalho, a sua moral e as suas leis diferentes das finalidades, dos modos de vida e de trabalho do meio não escolar; para essa dimensão o autor denominava “meio vivo”. 

Nesse contexto, outra crítica de Freinet se situava em relação ao conteudismo escolar, pois este valorizava o humano em todos os sentidos e em todas as culturas, fossem elas erudita ou popular, urbana ou rural, operária ou camponesa. Tal forma de pensar fez com que desafiasse a escola a transpor os muros que a separa da vida da comunidade, portanto, dizia ele, deve “[...]ir buscar a vida da aldeia, as cercanias da escola, os elementos de base dessa nova educação.” (FREINET, 1978, p, 23). Assim, ao condenar a educação conteudista que privilegia e impõe saberes alienados da vida dos seus alunos, punha em xeque e desafiava o papel dos professores/educadores: “Temos que alargar o horizonte da escola; temos que integrar o seus processo no processo da natureza e da vida social, se quisermos equilibrar a educação e dar-lhe o máximo de eficácia que a justifique.” (FREINET, 1998, p. 18). Dessa forma, acreditava que “[...] a simples explicação teórica e o estudo formal das regras e das leis não bastam para fundamentar algo de sólido, de lógico ou de definitivo. O grande segredo da educação inicial, de que estamos a nos ocupar, consiste precisamente em permitir a experiência por tentativas da criança em todos os domínios.” (FREINET, 1977, p. 46), e que a tentativa experimental faz-se por patamares, ou seja, “[...] em cada patamar a criança consolida a sua experiência até automatizá-la.” (FREINET, 1997, p. 46). 

No campo da aprendizagem inicial da escrita encontramos neste autor (FREINET, 1988, p. 24) a ideia de que “[...] nenhuma técnica conseguirá preparar melhor do que aquela que inicia as crianças a se exprimirem pela palavra, pela escrita, pelo desenho e pela gravura.” Outra contribuição do autor se refere ao conceito de trabalho; na sua concepção toda a criança tem o desejo do trabalho. Diante disso, a escola deverá organizá-lo como espaço livre das imposições ou ameaças, transformando-o em exercícios de pensamento. Sônia Regina de Souza Fernandes cio da responsabilização do indivíduo perante a comunidade e a própria sociedade. No quadro dessa ideia, compreende que a atividade escolar deve ser caracterizada como trabalho, cujo objetivo é captado pela criança e transformado em “[...]uma actividade já não escolar, mas simplesmente social e humana.” (FREINET, 1973, p. 114). Neste contexto, diz o autor, [...] ao tatear a criança busca incessantemente, conscientemente ou não, a resposta essencial e construtiva para os complexos problemas que a vida lhe apresenta. Não tateia somente para conhecer, mas para reagir aos acontecimentos com um máximo de sucesso [...] o tateio da criança é sempre interessado. Tem como meta – imediata ou não – o aumento do potencial de potência e o máximo de sucesso na luta pela vida. A curiosidade da criança tem sempre uma finalidade, direta ou não. (FREINET, 1978, p. 269). Freire, assim como Freinet, também questionava a concepção tradicional de escola, em que a centralidade da prática pedagógica do professor e dos conteúdos são os princípios orientadores. Dizia ele que “conteúdos programáticos”, deveriam ser democraticamente escolhidos pelas partes interessadas no ato de alfabetizar, dentro de uma proposta mais ampla de educar (FREIRE, 1995). Dessa forma, de acordo com Freinet (1988, p. 7) “[...] a educação não é uma fórmula de escola, mas sim uma obra de vida.” 

Tendo por base essas orientações que a Ponte organiza a sua didática da alfabetização com as crianças, bem como tantas outras atividades na escola. Na sequência, procuramos apresentar como esta dimensão se desenvolve na Escola da Ponte, no Espaço da Primeira Vez. O Espaço da Primeira Vez se caracteriza em um agrupamento de crianças em torno de seis a sete anos de idade, no qual há a apropriação dos rudimentos da leitura e da escrita. De acordo com o processo/movimento observado na Iniciação Primeira Vez, bem como os demais dados coletados, foi possível perceber como o processo inicial da alfabetização na Ponte é desencadeado. O ponto de partida é a notícia que cada criança diz/fala em relação ao seu final de semana. Oraliza para a professora que transcreve para o papel, assumindo a condição de escriba. Na sequência, cada criança desenha o que disse, com vistas a estabelecer relações entre o que se fala e o que se escreve. O desenho, além de ser visto com uma das formas de expressão, também é auxiliar da memória. No que se constitui esse processo? No que Soares (1996; 1999 e 2003), Freire (1975; 1983 e 1995) e Freinet (1977; 1973 e 1998) chamam de respeito ao repertório linguístico das crianças/alunos, em vê-los como sujeitos de cultura, portadores e produtores de saberes. Sobre isso, diz Freire (2002, p. 34): “[...] respeito à reflexões a partir da experiência.... circunstância de vida dos educandos, tomando como objeto da prática pedagógica a sua cotidianidade com a leitura de mundo que precede a leitura da palavra.” 

Freire (1975, p. 12) nos ajuda a compreender que “[...] alfabetizar-se não é apenas aprender a repetir palavras, mas dizer a sua palavra, criadora de cultura.” Além da presença no processo metodológico das orientações do método Natural de Freinet, procuramos buscar ainda as devidas aproximações com a metodologia da alfabetização em Freire (1983) na qual três categorias de conhecimento ancoram a proposição – valorização do universo vocabular; diálogo e problematização. Na leitura compreensiva desse processo desenvolvido na Escola Ponte, foi possível perceber e sentir, durante o processo de observação, a presença da valorização do universo vocabular das crianças. O diálogo entre professor e aluno também era algo presente, porém, não tão forte como ocorre/ocorria nos Círculos de Cultura. 

Já o princípio da problematização no Espaço da Primeira Vez ainda não se fazia em sua plenitude, contudo, estes dois últimos, encontravam lugar e materialidade em outros momentos e espaços da escola, como na Assembleia e nas Responsabilidades, por exemplo. Talvez, por se tratar de crianças pequenas e o método de Freire ter sido criado para alfabetizar adultos, justifique a não intensidade da presença das duas categorias em questão. Contudo, isso não desqualifica o processo alfabetizador em causa, o fato de valorar o repertório linguístico em que o universo vocabular da criança se expressa e se assenta. Desse modo, aponta para o que Soares (1996) denomina de processo com sentido, pois lança mão da linguagem social do grupo, nesse caso, da criança, superando, assim, o uso de cartilhas e outros materiais que tem na linguagem artificial seu aporte para o processo de aprendizagem da língua, portanto, descontextualizada. 

Provavelmente, essa seja uma das explicações para a motivação das crianças escreverem, pois diziam a sua palavra e não as escolhidas por outrem. Na sequência do que Freinet acreditava em relação ao Método Natural e com a experiência observada, é possível destacar a presença de alguns elementos fundamentais como: a) o estímulo à expressão livre da criança, embora ela não a faça sob a lógica do adulto em termos estéticos (do que usualmente é visto como bonito ou feito), a questão central é que ela se sinta sem medo e perceba que é capaz de escrever; b) a presença do respeito e do reconhecimento da escrita (do texto) de cada um e do valor dela pelo grupo, classe; c) a presença do diálogo sobre o texto/notícia do aluno para que possa perceber novas descobertas e o aperfeiçoamento do conhecimento da língua (linguístico) da criança e em alguns casos do grupo (no período observado, o processo centrava-se mais individualmente; a discussão coletiva ocorria nos momentos de contação de histórias). E, por fim, a presença do favorecimento por parte do professor no que diz respeito ao entendimento das crianças em relação à função social da escrita, de que ele escreve para se comunicar, bem como a compreensão de que não se escreve “certinho” nas primeiras tentativas, (é nesse quadro que o erro é bem-vindo) e, que precisará escrever e reescrever várias vezes. Assim, é possível perceber que a dinâmica ocorria mais centrada na fala e na escrita individual das crianças. Assim, a Escola da Ponte atua na ampliação do repertório linguístico da criança e do grupo. 

Disponível em: http://editora.unoesc.edu.br/index.php/visaoglobal/article/view/3418/1517; http://revistaescola.abril.com.br/formacao/jose-pacheco-escola-ponte-479055.shtml. Acesso em: 03/06/2015.

Imagem disponível em: http://educador.brasilescola.com/gestao-educacional/escola-ponte.htm. Acesso em: 03/06/2015.

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