ALFABETIZAÇÃO NA ESCOLA DA PONTE
A Ponte não segue um sistema baseado em seriação ou ciclos e seus professores não são responsáveis por uma disciplina ou por uma turma específicas. As crianças e os adolescentes que lá estudam - muitos deles violentos, transferidos de outras instituições - definem quais são suas áreas de interesse e desenvolvem projetos de pesquisa, tanto em grupo como individuais.
A cada ano, as crianças e os jovens criam as regras de convivência que serão seguidas inclusive por educadores e familiares. É fácil prever que problemas de adaptação acontecem. Há professores que vão embora e alunos que estranham tanta liberdade. Nada, no entanto, que faça a equipe desanimar.
O sistema tem se mostrado viável por pelo menos dois motivos: primeiro, porque os educadores estão abertos a mudanças; segundo, porque as famílias dos alunos apóiam e defendem a escola idealizada por Pacheco.
A cada ano, as crianças e os jovens criam as regras de convivência que serão seguidas inclusive por educadores e familiares. É fácil prever que problemas de adaptação acontecem. Há professores que vão embora e alunos que estranham tanta liberdade. Nada, no entanto, que faça a equipe desanimar.
O sistema tem se mostrado viável por pelo menos dois motivos: primeiro, porque os educadores estão abertos a mudanças; segundo, porque as famílias dos alunos apóiam e defendem a escola idealizada por Pacheco.
A Escola da Ponte, com nome oficial de Escola Básica Integrada de Aves/São
Tomé de Negrelos, foi criada na década de 1970. Situa-se ao norte de Portugal, no
Conselho de Santo Tirso em Vila das Aves. No período letivo de 2006/2007, havia em
torno de 206 alunos matriculados do 1º ao 9º ano, e contava aproximadamente com
37 professores (orientadores educativos), três funcionários do setor administrativo,
sendo um para cada agrupamento, quatro auxiliares educativos e uma gestora.
Fundada na década de 1940, a instituição foi administrada por José Pacheco
desde 1976 até a sua reforma recente. Nessa época, este educador iniciou um
projeto pedagógico diferenciado que continua até os dias atuais. Por um período
de 25 anos a Escola da Ponte foi uma escola primária. Em 2001, o Ministério da
Educação de Portugal transformou-a em uma Escola Básica Iintegrada, incluindo
o ensino fundamental e atendendo alunos de até 15 anos. Tudo isso, fruto de um
processo de luta e conquistas dos sujeitos nela envolvidos e comprometidos com
uma escola pública de qualidade.
Focalizarei aqui o processo pedagógico alfabetizador, com vistas
ao diálogo ao projeto emancipatório de escola e de sociedade, com o qual a escola
vem se comprometendo ao longo de sua história. Para tanto, buscamos, além da
observação, interlocutores que pudessem fornecer informações, indícios e pistas
que ajudassem a compreender o processo vivido por esse projeto até então, e em
especial, no sentido de poder defender a ideia de que a alfabetização é muito mais
do que a codificação e decodificação de palavras e códigos, constituíndo uma prá-
tica social, produto e produtora de cultura, no sentido freireano.
Historicamente, as práticas escolares de alfabetização não vêm considerando
os usos sociais de leitura e escrita da comunidade de origem das crianças/alunos. Tal
fato contribui para o que Soares (1996) denomina como o fracasso da/na escola. É
curioso, diz Soares (2003), que tenha ocorrido, em um mesmo momento histórico, em
sociedades distanciadas tanto geográfica, social , econômica quanto culturalmente,
a necessidade de reconhecer e nomear práticas sociais de leitura e de escrita mais
avançadas e complexas que as práticas do ler e do escrever resultantes da aprendizagem
do sistema de escrita.
Nessa perspectiva, a língua não é um mero código para
a comunicação. Ela é um fenômeno social, estruturado de forma dinâmica e coletiva,
portanto, a escrita também deve ser olhada do ponto de vista cultural e social.
Ao questionar esse caráter histórico dos processos de alfabetização, na qual
se encontra presente uma das dimensões mais recorrentes e naturalizadas nos processos
e práticas de alfabetização escolar, os métodos sintético, analítico ou misto,
caracterizados por processos mecânicos e repetitivos, portanto, sem sentido para
as crianças em processo inicial de apropriação da língua escrita, é que a Escola da
Ponte adota como referência o Método Natural/Global de base freinetiana, o qual
se assenta na atividade e na criação.
De acordo com a literatura, o método natural vivenciado no aprendizado
da língua e da gramática, preconizado por Freinet, é caracterizado pelo processo
Visão Global.
A didática da alfabetização pauta-se em reflexões a partir da experiência....
inverso dos procedimentos adotados pelo método tradicional, pois para o autor,
a atividade educativa tem como ponto de partida a expressão oral ou escrita das
crianças. Tal compreensão põe em xeque a ideia de que as aquisições são aprendidas
ou obtidas por meio do estudo de regras e leis, mas principalmente, pela
experiência. Diz Freinet (1977) que estudar primeiro as regras e leis é colocar “o
carro na frente dos bois”. As regras e leis são frutos da experiência, de outro modo
não passam de fórmulas sem valor.
Assim, Freinet (1977, p. 39) buscava explicação para diferenciar os métodos
tradicionais dos naturais. Para ele existe uma diferença fundamental de princípio,
sem a compreensão da qual todas as apreciações serão sempre injustas e errôneas:
os métodos tradicionais são especificamente escolares, criados, experimentados e
mais ou menos realizados por um meio escolar que tem as suas finalidades, os seus
modos de vida e de trabalho, a sua moral e as suas leis diferentes das finalidades,
dos modos de vida e de trabalho do meio não escolar; para essa dimensão o autor
denominava “meio vivo”.
Nesse contexto, outra crítica de Freinet se situava em relação ao conteudismo
escolar, pois este valorizava o humano em todos os sentidos e em todas
as culturas, fossem elas erudita ou popular, urbana ou rural, operária ou camponesa.
Tal forma de pensar fez com que desafiasse a escola a transpor os muros
que a separa da vida da comunidade, portanto, dizia ele, deve “[...]ir buscar a
vida da aldeia, as cercanias da escola, os elementos de base dessa nova educação.”
(FREINET, 1978, p, 23). Assim, ao condenar a educação conteudista que
privilegia e impõe saberes alienados da vida dos seus alunos, punha em xeque e
desafiava o papel dos professores/educadores: “Temos que alargar o horizonte
da escola; temos que integrar o seus processo no processo da natureza e da
vida social, se quisermos equilibrar a educação e dar-lhe o máximo de eficácia
que a justifique.” (FREINET, 1998, p. 18).
Dessa forma, acreditava que “[...] a simples explicação teórica e o estudo
formal das regras e das leis não bastam para fundamentar algo de sólido, de lógico
ou de definitivo. O grande segredo da educação inicial, de que estamos a nos
ocupar, consiste precisamente em permitir a experiência por tentativas da criança
em todos os domínios.” (FREINET, 1977, p. 46), e que a tentativa experimental faz-se
por patamares, ou seja, “[...] em cada patamar a criança consolida a sua experiência
até automatizá-la.” (FREINET, 1997, p. 46).
No campo da aprendizagem inicial da escrita encontramos neste autor
(FREINET, 1988, p. 24) a ideia de que “[...] nenhuma técnica conseguirá preparar
melhor do que aquela que inicia as crianças a se exprimirem pela palavra, pela
escrita, pelo desenho e pela gravura.”
Outra contribuição do autor se refere ao conceito de trabalho; na sua concepção
toda a criança tem o desejo do trabalho. Diante disso, a escola deverá organizá-lo
como espaço livre das imposições ou ameaças, transformando-o em exercícios de pensamento. Sônia Regina de Souza Fernandes
cio da responsabilização do indivíduo perante a comunidade e a própria sociedade.
No quadro dessa ideia, compreende que a atividade escolar deve ser caracterizada
como trabalho, cujo objetivo é captado pela criança e transformado em “[...]uma
actividade já não escolar, mas simplesmente social e humana.” (FREINET, 1973, p.
114). Neste contexto, diz o autor,
[...] ao tatear a criança busca incessantemente, conscientemente
ou não, a resposta essencial e construtiva para os
complexos problemas que a vida lhe apresenta. Não tateia
somente para conhecer, mas para reagir aos acontecimentos
com um máximo de sucesso [...] o tateio da criança é sempre
interessado. Tem como meta – imediata ou não – o aumento
do potencial de potência e o máximo de sucesso na luta pela
vida. A curiosidade da criança tem sempre uma finalidade,
direta ou não. (FREINET, 1978, p. 269).
Freire, assim como Freinet, também questionava a concepção tradicional de
escola, em que a centralidade da prática pedagógica do professor e dos conteúdos
são os princípios orientadores. Dizia ele que “conteúdos programáticos”, deveriam
ser democraticamente escolhidos pelas partes interessadas no ato de alfabetizar,
dentro de uma proposta mais ampla de educar (FREIRE, 1995). Dessa forma, de
acordo com Freinet (1988, p. 7) “[...] a educação não é uma fórmula de escola, mas
sim uma obra de vida.”
Tendo por base essas orientações que a Ponte organiza a
sua didática da alfabetização com as crianças, bem como tantas outras atividades
na escola. Na sequência, procuramos apresentar como esta dimensão se desenvolve
na Escola da Ponte, no Espaço da Primeira Vez.
O Espaço da Primeira Vez se caracteriza em um agrupamento de crianças
em torno de seis a sete anos de idade, no qual há a apropriação dos rudimentos
da leitura e da escrita. De acordo com o processo/movimento observado na Iniciação Primeira
Vez, bem como os demais dados coletados, foi possível perceber como o processo
inicial da alfabetização na Ponte é desencadeado. O ponto de partida é a notícia
que cada criança diz/fala em relação ao seu final de semana. Oraliza para a professora
que transcreve para o papel, assumindo a condição de escriba. Na sequência,
cada criança desenha o que disse, com vistas a estabelecer relações entre o que
se fala e o que se escreve. O desenho, além de ser visto com uma das formas de
expressão, também é auxiliar da memória.
No que se constitui esse processo? No que Soares (1996; 1999 e 2003),
Freire (1975; 1983 e 1995) e Freinet (1977; 1973 e 1998) chamam de respeito ao
repertório linguístico das crianças/alunos, em vê-los como sujeitos de cultura, portadores
e produtores de saberes. Sobre isso, diz Freire (2002, p. 34): “[...] respeito à reflexões a partir da experiência....
circunstância de vida dos educandos, tomando como objeto da prática pedagógica
a sua cotidianidade com a leitura de mundo que precede a leitura da palavra.”
Freire (1975, p. 12) nos ajuda a compreender que “[...] alfabetizar-se não é apenas
aprender a repetir palavras, mas dizer a sua palavra, criadora de cultura.”
Além da presença no processo metodológico das orientações do método
Natural de Freinet, procuramos buscar ainda as devidas aproximações com a metodologia
da alfabetização em Freire (1983) na qual três categorias de conhecimento
ancoram a proposição – valorização do universo vocabular; diálogo e problematização.
Na leitura compreensiva desse processo desenvolvido na Escola Ponte, foi
possível perceber e sentir, durante o processo de observação, a presença da valorização
do universo vocabular das crianças. O diálogo entre professor e aluno
também era algo presente, porém, não tão forte como ocorre/ocorria nos Círculos
de Cultura.
Já o princípio da problematização no Espaço da Primeira Vez ainda não
se fazia em sua plenitude, contudo, estes dois últimos, encontravam lugar e materialidade
em outros momentos e espaços da escola, como na Assembleia e nas
Responsabilidades, por exemplo.
Talvez, por se tratar de crianças pequenas e o método de Freire ter sido criado
para alfabetizar adultos, justifique a não intensidade da presença das duas categorias
em questão. Contudo, isso não desqualifica o processo alfabetizador em causa, o
fato de valorar o repertório linguístico em que o universo vocabular da criança se
expressa e se assenta. Desse modo, aponta para o que Soares (1996) denomina de
processo com sentido, pois lança mão da linguagem social do grupo, nesse caso,
da criança, superando, assim, o uso de cartilhas e outros materiais que tem na linguagem
artificial seu aporte para o processo de aprendizagem da língua, portanto,
descontextualizada.
Provavelmente, essa seja uma das explicações para a motivação
das crianças escreverem, pois diziam a sua palavra e não as escolhidas por outrem.
Na sequência do que Freinet acreditava em relação ao Método Natural e
com a experiência observada, é possível destacar a presença de alguns elementos
fundamentais como:
a) o estímulo à expressão livre da criança, embora ela não a faça sob a
lógica do adulto em termos estéticos (do que usualmente é visto como
bonito ou feito), a questão central é que ela se sinta sem medo e perceba
que é capaz de escrever;
b) a presença do respeito e do reconhecimento da escrita (do texto) de
cada um e do valor dela pelo grupo, classe;
c) a presença do diálogo sobre o texto/notícia do aluno para que possa
perceber novas descobertas e o aperfeiçoamento do conhecimento da
língua (linguístico) da criança e em alguns casos do grupo (no período
observado, o processo centrava-se mais individualmente; a discussão
coletiva ocorria nos momentos de contação de histórias). E, por fim, a presença do favorecimento por parte do professor no que diz
respeito ao entendimento das crianças em relação à função social da escrita, de
que ele escreve para se comunicar, bem como a compreensão de que não se escreve
“certinho” nas primeiras tentativas, (é nesse quadro que o erro é bem-vindo) e,
que precisará escrever e reescrever várias vezes.
Assim, é possível perceber que a dinâmica ocorria
mais centrada na fala e na escrita individual das crianças. Assim, a Escola da Ponte atua na ampliação do repertório linguístico da
criança e do grupo.
Disponível em: http://editora.unoesc.edu.br/index.php/visaoglobal/article/view/3418/1517; http://revistaescola.abril.com.br/formacao/jose-pacheco-escola-ponte-479055.shtml. Acesso em: 03/06/2015.
Imagem disponível em: http://educador.brasilescola.com/gestao-educacional/escola-ponte.htm. Acesso em: 03/06/2015.
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