DIFERENÇA NO CURRÍCULO
Um currículo é diferença por natureza; é pura diferença; é diferença em
si. Afinal, é um território de multiplicidades de todos os tipos, de disseminação
de saberes diversos, de encontros “variados”, de composições “caóticas”, de
disseminações “perigosas”, de contágios “incontroláveis”, de acontecimentos
“insuspeitados”. Um currículo é, por natureza, rizomático, porque é território
de proliferação de sentidos e multiplicação de significados. Apesar de todos
os poderes que fazem o controle, demarcam as áreas e opinam sobre como
evitar a desorganização em um currículo e que demandam sua formatação,
tudo vaza e escapa.
É certo que um currículo é também território povoado por buscas de ordenamentos
(de pessoas e espaços), de organizações (de disciplinas e campos),
de sequenciações (de conteúdos e níveis de aprendizagens), de estruturações
(de tempos e pré-requisitos), de enquadramentos (de pessoas e horários),
de divisões (de tempo, espaço, áreas, conteúdos, disciplinas, aprendizagens,
tipos, espécies...). Isso tudo porque o que está em jogo em um currículo é
a constituição de modos de vida, a tal ponto que a vida de muitas pessoas
depende do currículo.
Mas, se mesmo com os investimentos para controlar a diferença no
currículo, tudo aí ainda vaza, por que não pensar o currículo por meio de suas
bifurcações? Por que não experimentar no currículo o jogo da diferença? Por
que não pensar o currículo por meio dos seus vazamentos, escapes, suas linhas
de fugas, distorções e variações? Por que não priorizar a diferença em vez da
identidade e seguir as ramificações que surgirem desse pensamento?
Gilles Deleuze – como um filósofo da multiplicidade que pensou a repetição
(que é, também, diferença) e o acontecimento – exalta e reivindica a
diferença em si: o diferenciar-se em si da própria coisa. No plano da diferença,
constrói sua filosofia e inventa conceitos.
Toda a discussão que faz sobre diferença desloca completamente os
sentidos a ela comumente atribuídos, já que em vez de buscar o comum sob
a diferença, pensa “diferencialmente a diferença”. Em vez da identidade, que
tenta reduzir a diversidade a um elemento comum, Deleuze prefere a diferença
em si, a variação, a multiplicação, a disseminação e a proliferação. A diferença
é pensada não como uma característica relativamente geral a serviço da generalidade
do conceito, mas sim como puro acontecimento. Em vez do uno,
do todo, da origem, valoriza a multiplicidade, a diferenciação, a repetição e a
improvisação. Isso porque a diferença em Deleuze não é da ordem da representação; não é um produto e nem resultado. A diferença também não se refere
ao diferente; não é relação; não é predicativa e nem propositiva. A diferença
nunca é diferença entre dois indivíduos. Contra a diferença entre coisas ou
entes determinados, Deleuze afirma a diferença em si: “a diferença interna à
própria coisa”, o “diferenciar-se em si da coisa”. É claro que esse pensamento
pode deixar-nos perplexos. Afinal, sempre pensamos a diferença, no território
do currículo, em sua relação com a identidade. Sempre pensamos a diferença
entre entes e coisas. Estamos acostumados a nos preocupar com o diferente.
Entretanto, o diferente é irrelevante para a diferença deleuziana. O relevante
para a diferença é a singularidade, o fluir de forças, a transgressão. A diferença
em Deleuze é interior à Ideia, entendida como “multiplicidade substantiva” ou
como “sistema de diferenças”. Um sistema de diferenças é determinado por
uma complexa articulação de diferençações e diferenciações. As diferençações
acontecem em uma das metades da Idéia, no seu lado “distinto-obscuro”: distinto
devido a suas relações diferenciais e suas singularidades, e obscuro porque
esses elementos não estão ainda atualizados. Essa metade, em que operam
diferençações, é também chamada virtual. O virtual, em Deleuze, possui plena
realidade, uma vez que para ele, a realidade do virtual é como a de uma “tarefa
a ser cumprida”, ou de “um problema a ser resolvido”. Já as diferenciações
acontecem como linhas de um processo de atualização. Atualização que se faz
por processo de “diferença, divergência ou diferenciação”, rompendo com a
semelhança como processo e com a identidade como princípio. O pensamento curricular é, na contemporaneidade, um pensamento
identitário. Buscamos responder no currículo: “o que é mesmo?” Queremos
saber o que é um currículo por competências? Falamos das semelhanças entre
o currículo por competências e o currículo por objetivos. Procuramos identificar
currículos pós-críticos e distingui-los dos críticos. Apontamos semelhanças
e diferenças entre o currículo oficial e o alternativo. Queremos saber o que
é um currículo multicultural. Queremos saber o que é mesmo um currículo
organizado por projetos de trabalhos. O que é um currículo tradicional ou construtivista? O que é um currículo escolar e um currículo de outros artefatos?
Olhamos para a variedade de pensamentos existentes, de coisas, de indivíduos,
de práticas sociais procurando classificar, encontrar a unidade, aquilo que as
identifica: a identidade. Buscamos o comum sob a diferença. Pensar o currículo com a diferença deleuziana é tirar o foco da identidade:
tanto do pensamento identitário (que tem como critério a reunião) como do
conceito de identidade (que procura o comum sobre a diversidade ou que
identifica pessoas e grupos para, em seguida, agrupá-los como diferentes). Se
a reunião é o critério da generalidade e da identidade, o acontecimento é o
critério da diferença. Então a diferença é comportar-se em relação a algo que
não tem semelhante ou equivalente. A diferença é o que vem primeiro; é o
motor da criação; é a possibilidade de no meio, no espaço-entre, começar
a brotar hastes de rizoma. Diz respeito àquilo que está ainda em vias de se
formar: de currículos que são “realidade em potencial”, que ainda não foram
formados.
Os currículos deste mundo, os já existentes, são mesmo, sempre, currículos
já formados. Olhamos para esses currículos e vemos estratos já constituídos:
disciplinas, saberes, professoras, crianças, identidades, livros didáticos,
conteúdos, literatura infantil e juvenil, exercícios, atividades, conhecimentos,
mesas, carteiras enfileiradas ou em círculos, conversas, explicações, projetos,
atividades, ensino... Até pode haver metarmofoses, transformações, mudanças,
mas são sempre processos secundários aos estratos formados que daí resultam.
Com os pensamentos curriculares que aprendemos a usar, olhamos para os currículos existentes buscando essas coisas, pensando naquilo que já foi formado,
em organizar o caos ou a desorganização que venha a se manifestar. Ao juntar-nos a outros/as em um currículo, pensar um novo estilo para
um currículo. Fazer passar nesse território alguma energia. Deixar escapar, vazar
sensações: uma corrente de energia. Fazer cortes provisórios na multiplicidade
existente somente para espalhar, potencializar e seguir outras direções. Mostrar
nossos pensamentos e paixões concretas que, em um currículo, arrancam-nos
de nossa paralisia e dos poderes que fazem complô para que não pensemos
nada. Partilhar! Compartilhar! Viajar sem mapas prévios! Fazer outros traçados!
Fugir! Fazer composições e conexões! Inventar a cada vez suas orientações.
Aprender! Gerar possibilidades de aprendizagem em contextos insuspeitados.
Aumentar a potência de agir. Metamorfosear! Movimentar o próprio pensamento.
Escapar das tentativas de captura. Deslizar. Fugir e criar um outro currículo
que é e será único, inapreensível, incomunicável.
Disponível em: http://www.scielo.br/pdf/cp/v40n140/a1440140.pdf. Acesso em: 17/05/2015.
Imagem disponível em: http://luwiuyara.blogspot.com.br/2012/10/o-curriculo-tambem-e-diversidade.html. Acesso em: 17/05/2015.
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