EDUCAÇÃO EM SAÚDE
A gente ensina, você aprende: ênfases
prevalentes na educação em saúde
A familiaridade com que se continua acolhendo
programas e campanhas de educação em
saúde como essa anunciada pela frase-síntese
que instiga este artigo indica que, apesar de todas
as críticas já produzidas sobre esse modo
de fazer 1,2,3,4,5,6, ainda não estamos diante de
algo que perturba ou desacomoda o que se tem
dito e feito em termos de educação em saúde,
no Brasil. Os projetos educativos em saúde seguem
sendo majoritariamente inscritos na
perspectiva de transmissão de um conhecimento
especializado, que “a gente detém e ensina”
para uma “população leiga”, cujo saberviver
é desvalorizado e/ou ignorado nesses
processos de transmissão. Assume-se que, para
“aprender o que nós sabemos”, deve-se desaprender
grande parte do aprendido no cotidiano
da vida.
O processo sintetizado acima, com uma certa
ironia, pode ser melhor entendido se considerarmos
que as práticas sanitárias que ganharam
hegemonia ao longo do século XX fundaram-se
na afirmação da objetividade, da neutralidade
e da universalidade do saber científico
e nos modelos clássicos de explicação do
processo saúde-doença, pressupostos que sustentam
a prescrição de comportamentos tecnicamente
justificados como únicas escolhas possíveis
para o alcance do bem-estar de todos os
indivíduos, independentemente de sua inserção sócio-histórica e cultural. Por esse caminho,
foi incorporada à nossa cultura sanitária a
suposição de que comportamentos “não educados”
por esses padrões são insuficientes, insalubres
e inadequados (tanto do ponto de vista
técnico-sanitário quanto do moral), constituindo
o que vem sendo nomeado, contemporaneamente,
como “comportamentos de risco”.
O risco em saúde é representado como uma situação
de dano potencial, associado principalmente
a fatores individuais. Nesse sentido, “correr
risco apresenta um certo caráter definidor de
identidades desviantes” 7 (p. 1309), entendendo-se
que o risco “estaria na ignorância, fraqueza,
falta de interesse no cuidado de si, esse último
um imperativo numa sociedade em que se
atribui um alto valor à autonomia individual e
à competência para o auto-governo” 7 (p. 1309).
É nesse contexto discursivo que formas definidas
como “certas” e “erradas” de viver são
compreendidas como decorrência do domínio
ou da ignorância de um certo saber, e a educa-
ção, assentada no pressuposto da existência de
um sujeito humano potencialmente livre e autônomo,
passa a ser concebida e exercitada como
processo de instrução (passiva) para o exercício
do poder sobre a própria saúde. Esse processo
tem como objetivo central a mudança
(imediata e unilateral) de comportamentos individuais
a partir de decisões informadas sobre
a saúde, em um contexto onde se exercita uma
forma de comunicação de caráter basicamente
cognitivo/racional.
Assim, o que se verifica nos processos comunicativos
que colocam em movimento os
programas e projetos de educação em saúde é
a permanência da idéia de que a “falta de saú-
de” é um problema possível de ser solucionado,
individual ou coletivamente, desde que se
disponha de informações técnico-científicas
adequadas e/ou da vontade pessoal e política
dos sujeitos expostos a determinados agravos à
saúde. Mesmo naquelas propostas que buscam
ampliar a abrangência dos programas educativos,
tal ampliação dá-se no sentido da incorporação
de estratégias participativas, nas quais a
interação com o repertório sócio-cultural e o seu
resgate constituem um recurso de acomodação
dos conteúdos técnico-científicos ao universo
cultural daqueles a quem se deseja (ou se deve)
ensinar. A lógica que se persegue é a da busca
de meios mais eficazes para dar conta de objetivos
que continuam circunscritos ao universo
da higienização e normatização dos comportamentos,
como se uma consideração ampliada
de sua determinação pudesse gerar uma forma,
também ampliada, de prevenção de riscos
e adesão a comportamentos saudáveis ainda definidos e legitimados, em primeira instância,
pelo conhecimento técnico-científico 4. Continua-se,
pois, buscando enriquecer estratégias
didáticas tecnicamente informadas pelas “necessidades
de saúde” reconhecidas no âmbito
das ciências médicas.
Esta forma de olhar reforça a delimitação
do foco da educação em saúde na epidemiologia
do comportamento, pautada em fatores de
risco circunscritos ao indivíduo e supostamente
passíveis de correção a partir de ações racionais,
de responsabilidade de cada pessoa. No
entanto, Carvalho 8 argumenta que os chamados
“fatores de risco” constituem elementos indissociáveis
dos marcos culturais e sociais em
que se inscrevem e compõem “situações complexas
onde correr risco não é mais externo ao
indivíduo, mas se inscreve, com ele, num complexo
único de múltiplas dimensões – biológica,
social e cultural” 8 (p. 107).
Pode-se avançar na discussão dos sentidos
complexos do risco recorrendo-se também a
autores 9,10 que chamam atenção para o fato de
que um comportamento nomeado como “insalubre”,
tal como fumar, para voltar ao exemplo
com que iniciamos o texto, pode ser visto como
parte de uma atitude mais ampla de resistência
ou de suporte a condições de vida muito
difíceis de determinados grupos sociais. Nesse
caso, as tentativas de cooptar esses grupos podem
produzir pouco resultado, uma vez que
“tanto o adoecer como a exposição a determinados
riscos [podem estar constituindo] modos
possíveis de permanecer vivo e, por extensão, de
levar a vida” 6 (p. 95). Ou seja, é preciso considerar
que símbolos de resistência podem forjar
identidades grupais e redes de solidariedade,
uma situação na qual a resistência pode ser protetora
e, ao mesmo tempo, aumentar a susceptibilidade
a determinados problemas de saúde.
A crítica a essas abordagens educativas centradas
na informação para a mudança de comportamentos
mostra a necessidade de refletir
não só sobre o conteúdo da informação, mas,
principalmente, sobre como e por que a informação
é comunicada. O desafio central não estaria
no aprimoramento de técnicas de transmissão
de mensagens, de persuasão ou sedu-
ção, nos moldes das estratégias de marketing
comercial, mas em rever o pressuposto de que
a existência de elementos de informação científica
nas mensagens recebidas é necessário e
suficiente para aumentar a competência e/ou
a liberdade de decisão, uma vez que o que se vê
no dia-a-dia das práticas de saúde é que o conhecimento
científico é um elemento que passa
pela vida das pessoas através de uma espé-
cie de filtro de seus próprios saberes gerando um conhecimento diferente 11, ou seja, os grupos
sociais, e os indivíduos que os integram realizam
uma reconstrução desses saberes amalgamando-os
à sua visão de mundo em consonância
com suas experiências.
Essa compreensão não implica desconsiderar
que programas de educação em saúde podem
ser, de fato, muito efetivos para prover informações
básicas sobre diversos tópicos relacionados
à saúde para largos segmentos da população.
Também não desconsidera que o resultado,
mesmo que insuficiente e limitado, integra
o direito a tomar decisões informadas, de
modo que experiências de aprendizagem posteriores
podem ser beneficiadas com e a partir
desses conhecimentos.
Também na escola, um cenário emblemático
das práticas instituídas no campo da educa-
ção em saúde, revisões amplas das experiências
educativas realizadas em diferentes realidades
permitem constatar que programas focalizados
em temas variados como drogas, inclusive
álcool e tabaco, práticas sexuais desprotegidas,
gravidez na adolescência, nutrição ou
trânsito, são muito eficientes em aumentar conhecimentos,
têm alguma eficiência em mudar
atitudes e, com raras exceções, são ineficazes
na mudança de práticas relacionadas à saúde.
Esses resultados nos alertam para a necessidade
de promover um questionamento profundo
dessa permanência da centralidade da mudan-
ça de comportamentos nos objetivos da educação
em saúde. Torna-se cada vez mais evidente
que as mudanças comportamentais são
um produto muito raro dos projetos educativos
já implantados e, mais do que isso, constata-se
que as múltiplas dimensões que interagem
nos ambientes onde transcorre a vida tornam
muito difícil vincular diretamente as atividades
da educação em saúde aos comportamentos
que emergem no tempo 4.
Estudos como esses têm-nos encaminhado,
então, para a necessidade de trabalhar com a
noção de que educação envolve o conjunto dos
processos pelos quais indivíduos se transformam
em sujeitos de uma cultura, reconhecendo
que existem muitas e diferentes instâncias e
instituições sociais envolvidas com esses processos
de educar, algumas delas explicitamente
direcionadas para isso, enquanto que em outras
esses processos educativos não são tão explícitos
e nem mesmo intencionais 12. Cultura,
nesse contexto, é tomada como o conjunto de
códigos e de sistemas de significação lingüística,
por meio dos quais se atribuem sentidos às
coisas, sentidos esses que são passíveis de serem
compartilhados por um determinado grupo.
Ela não é universal, nem está dada de antemão, mas é ativamente produzida e modificada,
ou seja, poderíamos pensá-la como o conjunto
dos processos pelos quais se produz um
certo consenso acerca do mundo em que se vive.
Sendo assim, é o partilhamento deste consenso
que permite aos diferentes indivíduos se
reconhecerem como membros de determinados
grupos e não de outros, o que implica, também,
entender a cultura como um processo arbitrário,
uma vez que cada grupo pode viver de
forma diferente ou atribuir um significado diferente
a um mesmo fenômeno ou objeto 13.
Se direcionarmos esse modo de conceber a
educação e a cultura para pensar as formas pelas
quais se definem as relações com o corpo,
os cuidados que se dispensam a ele, os limites
que se estabelecem entre normal e anormal e
entre saúde e doença, por exemplo, temos de
entender tais saberes e práticas como integrantes
do processo de construção desses corpos e
desses sujeitos. Ou seja, mesmo que não estejamos,
aqui, negando o fato de que corpos humanos
e as manifestações dos sujeitos humanos
acerca de seus corpos envolvem uma materialidade
biológica que se expressa por uma
anatomia e uma fisiologia próprias, estamos
enfatizando que o corpo e o processo saúdedoença
em que ele é inscrito é, ao mesmo tempo,
uma construção lingüística e cultural. Nessa
direção, corpo, saúde e doença só adquirem
determinados sentidos no contexto da cultura
e da linguagem em que são compreendidos e
experienciados.
Assim, a educação em saúde, como parte
de um processo de educação mais ampla, passa
a ser entendida tanto como uma instância
importante de construção e veiculação de conhecimentos
e práticas relacionados aos modos
como cada cultura concebe o viver de forma
saudável e o processo saúde/doença quanto
como uma instância de produção de sujeitos
e identidades sociais. Que questões perspectivas
como essa colocam aos educadores/as
em saúde?
Em primeiro lugar, desde uma dimensão
ética, caberia assumir que a promoção da saú-
de e a prevenção de doenças, em última instância,
implicam o exercício de determinadas
formas de poder, de autoridade e de controle
social. Seria preciso admitir, também, que a
educação em saúde tem uma dimensão comportamental
e imediata, mas não se resume a
ela. Haveria necessidade de assumir, ainda,
que a busca de alternativas no campo da educação
em saúde requer o estabelecimento de
objetivos pautados no empenho em compartilhar
e submeter à legitimação social os conhecimentos
construídos no setor saúde e informados pela ciência, reconhecendo as dimensões
contraditórias (e transitórias) dos “comportamentos
saudáveis”. Dever-se-ia, pois, considerar
que a produção de experiências mais
ou menos patogênicas, mais ou menos promotoras
de bem-estar está vinculada às relações
intersubjetivas que se estabelecem no processo
de re-construção de padrões culturais validados
socialmente.
Disponível em: http://www.scielosp.org/pdf/csp/v22n6/22.pdf. Acesso em: 30/05/2015.
Imagem disponível em: http://iasdcentraldebrasilia.com.br/necessidade-da-educacao-quanto-saude/. Acesso em: 30/05/2015.
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