ALFABETIZAÇÃO EM GRUPOS
A Casa Monte Alegre (CMA) é uma
pequena instituição particular, situada em
um bairro eminentemente residencial do
Rio de Janeiro, Santa Teresa. Fundado
há 11 anos, este espaço recebe crianças
de 0 a 6 anos, em grande parte moradoras
das imediações.
Embora nesta instituição compreendamos
que o trabalho de formação do
leitor e do escritor acontece em todos
os grupos, só começamos a alfabetizar
de forma sistemática as crianças de 6
anos há cerca de 5 anos. Antes disto,
as crianças saíam da instituição para
serem alfabetizadas em outras escolas.
Ao assumirmos esta nova dimensão
no nosso trabalho, tínhamos como desafio
garantir que nossos objetivos mais
amplos continuassem vivos e presentes,
mesmo em face do aspecto mais formal
que a tarefa de dominar o código
escrito apontava. Ou seja, queríamos
que o fato de incorporarmos a tarefa
de alfabetizar não excluísse outros
enfoques que caracterizam a identidade
do projeto pedagógico da Casa Monte
Alegre.
Então, para situarmos a experiência
de alfabetização, é necessário que possamos
caracterizar mais amplamente
esses pressupostos teóricos e filosóficos
que norteiam o trabalho na CMA, tendo
em vista que nosso movimento tem sido
o de estar atentos para a coerência entre
as propostas desenvolvidas com os
grupos de alfabetização e os demais.
No que diz respeito ao trabalho realizado
com grupos heterogêneos composto
por alfas e não-alfas, os primeiros
assumem dentro do grupo o lugar
dos que podem contribuir com um conhecimento
de que, naquele momento,
estão mais apropriados que os demais:
ler e escrever alfabeticamente. As
crianças do grupo (e também da escola
de modo geral), reconhecem isso e é
muito comum que elas busquem auxílio
dos alfas para ler ou registrar algo de
seu interesse. Os questionamentos dos
não-alfas provocam uma reflexão nos
alfas e vice-versa.
Vale esclarecer que chamamos de
alfas as crianças que estão vivendo o
momento de sistematização da aprendizagem
da leitura e da escrita, tendo em
vista o ingresso na 1a
série do Ensino
Fundamental no ano seguinte. Denominamos
de não-alfas as crianças que participam
do mesmo grupo, mas não têm o
compromisso da sistematização da leitura
e da escrita naquele momento. É na intensidade das trocas que as
crianças vão experimentando diferentes papéis. Ora uma criança está respondendo,
ou seja, apropriando-se dos
seus saberes e compartilhando com o
outro, ora essa mesma criança poderá
estar questionando, expondo alguma
dúvida. É essa mobilidade dos papéis
que expõe as crianças a refletirem sobre
o mundo que as rodeia. O mesmo
acontece com relação à língua. Neste
sentido, entendemos que mesmo aquelas
crianças que não estão vivendo a
sistematização do processo de alfabetização
estão no curso dele, experimentando-se
cotidianamente como leitores
e escritores.
A relação entre os alfas e
não-alfas garante desafios que se desdobram
em potencialidades para ambos.
Apesar de designarmos algumas crianças
por uma aparente negativa (nãoalfa),
a força do papel de cada uma é
muito valorizada no grupo. A presença
das crianças que não estão envolvidas
no compromisso de sistematização da
leitura e da escrita contribui para que
todas as linguagens estejam em cena o
tempo todo, em cada projeto vivido.
As crianças entendem que saber ler
e escrever não é um aval que faz delas
crianças mais importantes que outras.
Muito pelo contrário. Ter crianças num
mesmo grupo que vivem o desafio de
sistematizar a leitura e a escrita e outras
que não estão vivendo isso é mais uma
possibilidade de garantir encontros cada
vez mais ricos, expressivos, solidários,
produtivos, onde todos os saberes têm o
seu valor, e onde cada experiência ganha
um sabor particular. Fazer o teatro
de uma história (como dizem as crian-
ças) ou desenhá-la são atividades tão desafiadoras
e gostosas quanto escrevê-la
ou escrever seu título.
Enfim, de acordo com nossos pressupostos,
entendendo que toda criança
produz saberes e culturas e que é no
encontro com outras crianças e adultos
que estes saberes se constituem, percebemos
que a idade cronológica passa
a ser um fator de pouca relevância
na construção destes saberes. O conhecimento
faz-se presente na relação onde
o adulto assume o papel fundamental
de interlocutor, desafiador e promotor
de encontros, com base nos princípios
teóricos de alfabetização de grupos heterogêneos.
Passemos agora às experiências propriamente
ditas. Desde o primeiro ano
do trabalho de alfabetização na CMA, ria imprescindível termos clareza das
diferenças com relação aos conhecimentos
sobre leitura e escrita das crian-
ças. Era também preciso que, além disto,
discutíssemos amplamente os desafios
adequados, discriminando as necessidades
específicas de cada uma. Não queríamos
que o fato de termos crianças
em alfabetização fizesse com que planejássemos
a maior parte do tempo propostas
voltadas para a leitura e a escrita.
Era fundamental garantir outros espaços
de expressão. Era também fundamental
que, mesmo nos momentos
voltados para ler e escrever, distinguíssemos
os desafios apropriados para
cada uma. Além disso, era importante
pensarmos em como organizar o grupo
de modo que, mesmo que os desafios
precisassem ser diferenciados, houvesse
momentos em que estar juntos e produzir
coletivamente enriquecesse as
propostas. Trata-se de perceber a necessidade
de olhar o individual e a riqueza
do compartilhar.
Pensando nisso, vimos que o primeiro
passo do início do ano letivo seria
mapear as diferentes formas de expressão
de cada criança. Esta avaliação não
leva em conta apenas o que a criança
sabe sobre leitura e escrita, mas também
a forma como ela se expõe no grupo,
seu modo próprio de estabelecer relações,
suas dificuldades, seus interesses
e desejos. Assim, uma criança que
se mostra muito desenvolta no aprendizado
da língua escrita, pode revelar dificuldades
em produzir coletivamente, ou
mesmo em integrar-se em brincadeiras
que envolvam movimento. Para esta
criança, será importante pensar em organizações
grupais em que ela possa ter
experiências de trabalhar coletivamente,
em propostas em que ela se engaje
pela via da corporeidade
O papel que cada um precisa viver no grupo é também considerado. Para
uma criança que, por exemplo, mostrase
muito insegura de seu saber, pode
ser interessante integrar-se em alguns
momentos num subgrupo em que ela
seja a mais velha, podendo-se afirmar
como potente, assumindo lugar de quem
sabe no auxílio das outras.
O importante nesta avaliação inicial,
que na verdade é constantemente repensada
à luz do que vamos percebendo
ao longo do desenvolvimento do trabalho,
é que as crianças possam viver
juntas experiências significativas, onde
estejam garantidos desafios pertinentes
às necessidades de pequenos subgrupos
e até mesmo individuais.
O grupo não trabalha o tempo todo
junto, subgrupos são compostos tendo em
vista o desenvolvimento da autonomia e
do aprendizado de construir junto. O professor
não assume papel centralizador,
estabelecendo uma tarefa igual para todos
a todo o momento. De um modo
geral, todos os dias existem momentos
coletivos (de grupo inteiro integrado) e
outros de trabalho em subgrupos (trios,
duplas, quadras). Esta estruturação favorece
também o aprofundamento no
estudo e/ou na produção, uma vez que a
troca e a cooperação ampliam as possibilidades
de descoberta.
Colocamos em foco, neste momento,
algumas experiências vividas nos últimos
anos letivos de 2003 e 2004 e 2005.
Apresentamos, então, três grupos: Grupo
Gelo , constituído de 13 crianças com
idades entre 4 e 6 anos, estando 4 delas
no último ano do processo de alfabetização;
Grupo do Desenho, constituí-
do de 9 crianças, todas elas com idade
entre 5 anos e meio e 6 anos e concluindo
o processo de alfabetização; Grupo
Misturado, constituído de 15 crian-
ças cujas idades variam entre 3 anos e
meio e 6 anos, duas delas concluindo o
processo de alfabetização. Vale destacar
que as diferenças etárias oscilaram
nestes três grupos, constituindo desafios
diferenciados a cada ano e, com o
resultado obtido, fortalece-se a confian-
ça em nossa opção de integrar diferentes
faixas etárias.
A valorização das diferentes linguagens
infantis é ponto norteador do nosso
trabalho, a presença da relação com
a arte, com a cultura e o saber científico
é intensa. As temáticas geradoras
de experiências (céu e poesias) são fruto
do desejo trazido pelas crianças, captados
em diálogos, perguntas, etc. Precisamos dizer que, para pensarmos
na formação de subgrupos para escrever
algo (por exemplo), é importante
que a distância dos saberes das crian-
ças (sobre a escrita) não seja muito
grande (para que um represente desafio
para o outro), se não, há o risco daquele
que já escreve fluentemente de
forma alfabética atropelar o que está
descobrindo as letras.
É importante também levar em consideração
que, na formação destes
subgrupos (especialmente duplas)
onde o desafio é a escrita de algo, onde
um vai contribuindo com as idéias e o
outro escrevendo, as crianças confrontem-se
especialmente com a questão
do tempo da escrita; com freqüência,
o que não está escrevendo tende
a correr com a fala e é desafiado a
acompanhar o tempo do outro que está pensando a escrita (geralmente, um
tempo mais lento).
Nestas propostas em dupla, é interessante
que o escriba seja o não-alfa
(viver as duas alternativas é algo rico,
sempre), pois o alfa (com o conhecimento
mais avançado) engaja-se na
produção escrita do não-alfa, incentivando-o
a colocar mais letras, fazer espaços
entre as palavras, etc.
Mais uma vez reiteramos que a exposição
para o grupão do que foi produzido
em subgrupos é sempre fundamental.
Trata-se de uma nova forma
de posicionamento acerca da produ-
ção: dizer o que foi feito, como foi feito
para o outro implica refletir sobre o
produto e o processo de elaboração
dele. Mesmo quando as propostas são
individuais (por exemplo, cada um vai
escrever ou desenhar uma parte de
uma história em seu caderno), incentivamos
as trocas de idéias, a busca
de modelos que possam inspirar a produção
de cada um (olhar os murais que
temos na sala, com textos já produzidos;
perguntar para o amigo uma dú-
vida). Sentar em subgrupos, ter a sala
repleta de muitas produções culturais
das crianças como pinturas, objetos
modelados, textos, livros mobiliza a
sensação de pertencimento e auto-confiança,
por meio das quais as crian-
ças vão se sentindo confiantes para
experimentarem-se no que sabem, no
que estão conquistando, e, em seguida,
também no que não sabem. É comum escutarmos não sei diante
de um outro que sabe. As crianças
vão reconhecendo as limitações do seu
saber, à medida que vão descobrindo a
arbitrariedade do mundo letrado. Este
não sei revela que ela já sabe que não
sabe (o que é valioso). A partir daí vamos
investindo naquilo que cada um
pode (Mas o que você sabe? Qual é
o seu melhor?).
Esta é uma tarefa essencial e complexa
que exige do professor muita escuta
e sensibilidade para avaliar as necessidades
e a partir daí propor desafios
do tamanho de cada um. A valorização
do saber de cada um é um desafio
que se faz presente todos os dias,
fazendo-nos conscientes de que a diferença
jamais pode ser entendida como
desigualdade.
Viver as diferenças existentes entre
as crianças de modo geral, sobretudo,
entre alfas e não-alfas é mais
que o desejo de valorizar as potencialidades
de cada um e descobrir muitas
possibilidades de conhecimento nestas
diferenças. No caso da CMA, o lugar
dos alfas marca também um momento
de despedida, com o início de uma nova etapa do processo de escolariza-
ção. Relaciona-se também com fazer
novos amigos, conhecer novos espa-
ços, novos professores... enfim... tem
a ver com continuar crescendo.
Disponível em: http://www.revistadoprofessor.com.br/site/sistema/as/artigos/48907.pdf. Acesso em: 14/05/2015.
Imagem disponível em: http://revistaescola.abril.com.br/planejamento-e-avaliacao/interacoes/parceiros-acao-431402.shtml. Acesso em: 14/05/2015.
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