quinta-feira, 14 de maio de 2015

ALFABETIZAÇÃO EM GRUPOS




A Casa Monte Alegre (CMA) é uma pequena instituição particular, situada em um bairro eminentemente residencial do Rio de Janeiro, Santa Teresa. Fundado há 11 anos, este espaço recebe crianças de 0 a 6 anos, em grande parte moradoras das imediações. Embora nesta instituição compreendamos que o trabalho de formação do leitor e do escritor acontece em todos os grupos, só começamos a alfabetizar de forma sistemática as crianças de 6 anos há cerca de 5 anos. Antes disto, as crianças saíam da instituição para serem alfabetizadas em outras escolas. Ao assumirmos esta nova dimensão no nosso trabalho, tínhamos como desafio garantir que nossos objetivos mais amplos continuassem vivos e presentes, mesmo em face do aspecto mais formal que a tarefa de dominar o código escrito apontava. Ou seja, queríamos que o fato de incorporarmos a tarefa de alfabetizar não excluísse outros enfoques que caracterizam a identidade do projeto pedagógico da Casa Monte Alegre. Então, para situarmos a experiência de alfabetização, é necessário que possamos caracterizar mais amplamente esses pressupostos teóricos e filosóficos que norteiam o trabalho na CMA, tendo em vista que nosso movimento tem sido o de estar atentos para a coerência entre as propostas desenvolvidas com os grupos de alfabetização e os demais. 

No que diz respeito ao trabalho realizado com grupos heterogêneos composto por alfas e não-alfas, os primeiros assumem dentro do grupo o lugar dos que podem contribuir com um conhecimento de que, naquele momento, estão mais apropriados que os demais: ler e escrever alfabeticamente. As crianças do grupo (e também da escola de modo geral), reconhecem isso e é muito comum que elas busquem auxílio dos alfas para ler ou registrar algo de seu interesse. Os questionamentos dos não-alfas provocam uma reflexão nos alfas e vice-versa. Vale esclarecer que chamamos de alfas as crianças que estão vivendo o momento de sistematização da aprendizagem da leitura e da escrita, tendo em vista o ingresso na 1a série do Ensino Fundamental no ano seguinte. Denominamos de não-alfas as crianças que participam do mesmo grupo, mas não têm o compromisso da sistematização da leitura e da escrita naquele momento. É na intensidade das trocas que as crianças vão experimentando diferentes papéis. Ora uma criança está respondendo, ou seja, apropriando-se dos seus saberes e compartilhando com o outro, ora essa mesma criança poderá estar questionando, expondo alguma dúvida. É essa mobilidade dos papéis que expõe as crianças a refletirem sobre o mundo que as rodeia. O mesmo acontece com relação à língua. Neste sentido, entendemos que mesmo aquelas crianças que não estão vivendo a sistematização do processo de alfabetização estão no curso dele, experimentando-se cotidianamente como leitores e escritores. 

A relação entre os alfas e não-alfas garante desafios que se desdobram em potencialidades para ambos. Apesar de designarmos algumas crianças por uma aparente negativa (nãoalfa), a força do papel de cada uma é muito valorizada no grupo. A presença das crianças que não estão envolvidas no compromisso de sistematização da leitura e da escrita contribui para que todas as linguagens estejam em cena o tempo todo, em cada projeto vivido. As crianças entendem que saber ler e escrever não é um aval que faz delas crianças mais importantes que outras. Muito pelo contrário. Ter crianças num mesmo grupo que vivem o desafio de sistematizar a leitura e a escrita e outras que não estão vivendo isso é mais uma possibilidade de garantir encontros cada vez mais ricos, expressivos, solidários, produtivos, onde todos os saberes têm o seu valor, e onde cada experiência ganha um sabor particular. Fazer o teatro de uma história (como dizem as crian- ças) ou desenhá-la são atividades tão desafiadoras e gostosas quanto escrevê-la ou escrever seu título. Enfim, de acordo com nossos pressupostos, entendendo que toda criança produz saberes e culturas e que é no encontro com outras crianças e adultos que estes saberes se constituem, percebemos que a idade cronológica passa a ser um fator de pouca relevância na construção destes saberes. O conhecimento faz-se presente na relação onde o adulto assume o papel fundamental de interlocutor, desafiador e promotor de encontros, com base nos princípios teóricos de alfabetização de grupos heterogêneos.

Passemos agora às experiências propriamente ditas. Desde o primeiro ano do trabalho de alfabetização na CMA, ria imprescindível termos clareza das diferenças com relação aos conhecimentos sobre leitura e escrita das crian- ças. Era também preciso que, além disto, discutíssemos amplamente os desafios adequados, discriminando as necessidades específicas de cada uma. Não queríamos que o fato de termos crianças em alfabetização fizesse com que planejássemos a maior parte do tempo propostas voltadas para a leitura e a escrita. Era fundamental garantir outros espaços de expressão. Era também fundamental que, mesmo nos momentos voltados para ler e escrever, distinguíssemos os desafios apropriados para cada uma. Além disso, era importante pensarmos em como organizar o grupo de modo que, mesmo que os desafios precisassem ser diferenciados, houvesse momentos em que estar juntos e produzir coletivamente enriquecesse as propostas. Trata-se de perceber a necessidade de olhar o individual e a riqueza do compartilhar. Pensando nisso, vimos que o primeiro passo do início do ano letivo seria mapear as diferentes formas de expressão de cada criança. Esta avaliação não leva em conta apenas o que a criança sabe sobre leitura e escrita, mas também a forma como ela se expõe no grupo, seu modo próprio de estabelecer relações, suas dificuldades, seus interesses e desejos. Assim, uma criança que se mostra muito desenvolta no aprendizado da língua escrita, pode revelar dificuldades em produzir coletivamente, ou mesmo em integrar-se em brincadeiras que envolvam movimento. Para esta criança, será importante pensar em organizações grupais em que ela possa ter experiências de trabalhar coletivamente, em propostas em que ela se engaje pela via da corporeidade

O papel que cada um precisa viver no grupo é também considerado. Para uma criança que, por exemplo, mostrase muito insegura de seu saber, pode ser interessante integrar-se em alguns momentos num subgrupo em que ela seja a mais velha, podendo-se afirmar como potente, assumindo lugar de quem sabe no auxílio das outras. O importante nesta avaliação inicial, que na verdade é constantemente repensada à luz do que vamos percebendo ao longo do desenvolvimento do trabalho, é que as crianças possam viver juntas experiências significativas, onde estejam garantidos desafios pertinentes às necessidades de pequenos subgrupos e até mesmo individuais. O grupo não trabalha o tempo todo junto, subgrupos são compostos tendo em vista o desenvolvimento da autonomia e do aprendizado de construir junto. O professor não assume papel centralizador, estabelecendo uma tarefa igual para todos a todo o momento. De um modo geral, todos os dias existem momentos coletivos (de grupo inteiro integrado) e outros de trabalho em subgrupos (trios, duplas, quadras). Esta estruturação favorece também o aprofundamento no estudo e/ou na produção, uma vez que a troca e a cooperação ampliam as possibilidades de descoberta. Colocamos em foco, neste momento, algumas experiências vividas nos últimos anos letivos de 2003 e 2004 e 2005. Apresentamos, então, três grupos: Grupo Gelo , constituído de 13 crianças com idades entre 4 e 6 anos, estando 4 delas no último ano do processo de alfabetização; Grupo do Desenho, constituí- do de 9 crianças, todas elas com idade entre 5 anos e meio e 6 anos e concluindo o processo de alfabetização; Grupo Misturado, constituído de 15 crian- ças cujas idades variam entre 3 anos e meio e 6 anos, duas delas concluindo o processo de alfabetização. Vale destacar que as diferenças etárias oscilaram nestes três grupos, constituindo desafios diferenciados a cada ano e, com o resultado obtido, fortalece-se a confian- ça em nossa opção de integrar diferentes faixas etárias.

A valorização das diferentes linguagens infantis é ponto norteador do nosso trabalho, a presença da relação com a arte, com a cultura e o saber científico é intensa. As temáticas geradoras de experiências (céu e poesias) são fruto do desejo trazido pelas crianças, captados em diálogos, perguntas, etc. Precisamos dizer que, para pensarmos na formação de subgrupos para escrever algo (por exemplo), é importante que a distância dos saberes das crian- ças (sobre a escrita) não seja muito grande (para que um represente desafio para o outro), se não, há o risco daquele que já escreve fluentemente de forma alfabética atropelar o que está descobrindo as letras. É importante também levar em consideração que, na formação destes subgrupos (especialmente duplas) onde o desafio é a escrita de algo, onde um vai contribuindo com as idéias e o outro escrevendo, as crianças confrontem-se especialmente com a questão do tempo da escrita; com freqüência, o que não está escrevendo tende a correr com a fala e é desafiado a acompanhar o tempo do outro que está pensando a escrita (geralmente, um tempo mais lento). 

Nestas propostas em dupla, é interessante que o escriba seja o não-alfa (viver as duas alternativas é algo rico, sempre), pois o alfa (com o conhecimento mais avançado) engaja-se na produção escrita do não-alfa, incentivando-o a colocar mais letras, fazer espaços entre as palavras, etc. Mais uma vez reiteramos que a exposição para o grupão do que foi produzido em subgrupos é sempre fundamental. Trata-se de uma nova forma de posicionamento acerca da produ- ção: dizer o que foi feito, como foi feito para o outro implica refletir sobre o produto e o processo de elaboração dele. Mesmo quando as propostas são individuais (por exemplo, cada um vai escrever ou desenhar uma parte de uma história em seu caderno), incentivamos as trocas de idéias, a busca de modelos que possam inspirar a produção de cada um (olhar os murais que temos na sala, com textos já produzidos; perguntar para o amigo uma dú- vida). Sentar em subgrupos, ter a sala repleta de muitas produções culturais das crianças como pinturas, objetos modelados, textos, livros mobiliza a sensação de pertencimento e auto-confiança, por meio das quais as crian- ças vão se sentindo confiantes para experimentarem-se no que sabem, no que estão conquistando, e, em seguida, também no que não sabem. É comum escutarmos não sei diante de um outro que sabe. As crianças vão reconhecendo as limitações do seu saber, à medida que vão descobrindo a arbitrariedade do mundo letrado. Este não sei revela que ela já sabe que não sabe (o que é valioso). A partir daí vamos investindo naquilo que cada um pode (Mas o que você sabe? Qual é o seu melhor?). Esta é uma tarefa essencial e complexa que exige do professor muita escuta e sensibilidade para avaliar as necessidades e a partir daí propor desafios do tamanho de cada um. A valorização do saber de cada um é um desafio que se faz presente todos os dias, fazendo-nos conscientes de que a diferença jamais pode ser entendida como desigualdade. Viver as diferenças existentes entre as crianças de modo geral, sobretudo, entre alfas e não-alfas é mais que o desejo de valorizar as potencialidades de cada um e descobrir muitas possibilidades de conhecimento nestas diferenças. No caso da CMA, o lugar dos alfas marca também um momento de despedida, com o início de uma nova etapa do processo de escolariza- ção. Relaciona-se também com fazer novos amigos, conhecer novos espa- ços, novos professores... enfim... tem a ver com continuar crescendo.

Disponível em: http://www.revistadoprofessor.com.br/site/sistema/as/artigos/48907.pdf. Acesso em: 14/05/2015.

Imagem disponível em: http://revistaescola.abril.com.br/planejamento-e-avaliacao/interacoes/parceiros-acao-431402.shtml. Acesso em: 14/05/2015.

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