ALUNOS QUE NÃO APRENDEM, PROFESSOR QUE NÃO ENSINAM
Como ensinamos
Algumas vezes o modo como ensinamos é tão distante da realidade, isto
é, tão diferente da maneira como as coisas realmente funcionam que não há porque aprender
aquilo. E acredite se quiser, nossos alunos sabem disso e na maioria das vezes nós,
professores, não sabemos. Posso mencionar, por exemplo, o que aconteceu outro dia em uma
das minhas aulas de francês: a professora me deu uma lista de maneiras de como um
determinado som é representado ortograficamente em francês. Eu li, dei outros exemplos e
tudo parecia correr bem. A aluna - eu - tinha entendido tudo direitinho. Imediatamente depois
disso a professora me pediu para ler um texto em voz alta. Adivinhe o que aconteceu. Pude
ler perfeitamente bem todas as palavras que já conhecia mas cometi erros de pronúncia em
muitas das palavras novas. Isso aconteceu porque eu não poderia ler em voz alta,
compreender o significado do texto e ainda pensar nas regras que ela me deu, tudo isso ao
mesmo tempo. Algumas partes do processamento da linguagem têm de ser automáticas, não
podemos pensar em regras fonéticas, fonológicas e sintáticas quando estamos realmente
usando a língua e querendo compreender o significado do texto.
Todo professor de língua já passou, pelo menos uma vez, por uma experiência como
esta. Ensinou a ‘gramática’ e deu alguns exercícios de fixação (drilling exercises). Feito isso,
encontrou muitos erros relacionados àquele ‘ponto gramatical’ na produção oral ou escrita
dos alunos. “Meu Deus, o que esses alunos têm na cabeça?” o professor se pergunta
desesperado. “Por que eles fazem tudo certo nos exercícios e cometem tantos erros quando
produzem um texto?” (É interessante dar uma olhada cuidadosa na palavra drill, usada para se
referir a exercícios de fixação. Drill significa prática, repetição, treino militar,
condicionamento, furadeira (boring tool), furar (bore), chatear, doutrinar, inculcar. Devemos,
então, pensar na concepção de ensinar e aprender que podemos encontrar atrás dessa palavra.
Muitos de nós não chama mais os exercícios de drills mas a essência deles continua a mesma
nas aulas de língua estrangeira.
O problema aqui é que ensinamos coisas que não são reais. Estamos tentando trazer à
consciência dos alunos algo que precisa ser realizado inconscientemente para funcionar bem.
Os alunos precisam saber usar a linguagem do jeito que ela é e, não, saber todas as regras
explicitamente. Existem muitas coisas na nossa língua materna que podemos usar mas não
podemos explicar. Por que é em São Paulo, em Minas mas no Rio? Uma vez vi alguém
perguntar a um falante nativo do inglês porque não se usa do em sentenças afirmativas. O
nativo precisou de algum tempo para desistir de pensar e dizer que ele não sabia. Tenho
certeza de que nenhum professor de inglês, principalmente os não nativos, precisaria de mais
de alguns poucos minutos para dar uma boa resposta a essa pergunta. Explicar isso é fácil
para nós, professores, porque nos preocupamos com as regras. A diferença entre o falante
nativo e o professor é que o primeiro sabe como usar a língua e não costuma pensar em como
as coisas funcionam, ele apenas a usa e ela funciona. O professor, por outro lado, além de
saber como usar a língua, sabe, acima de tudo, como ela funciona e, na ansiedade de ensinar,
tende a transformar a aprendizagem da língua na aprendizagem de um monte de regras.
Não estou dizendo que temos de jogar todas as regras fora. Eu realmente acredito que
as regras algumas vezes nos ajudam a organizar o conhecimento da língua, mas elas não
deveriam ser o mais importante na aprendizagem daquela. Saber uma língua significa saber
como usar a língua e, para usar a língua fluentemente temos de pensar no significado e deixar
a forma sair automaticamente. Se tivermos de gastar muito dos nossos recursos cognitivos
pensando sobre a forma, não sobrará nenhum recurso para lidar com o significado. Daí se
pode concluir que a comunicação não se efetivará.
Com a abordagem comunicativa, essa obsessão pela forma diminuiu, mas o que se
percebe é que muitos professores estão perdidos, não sabem o que fazer agora, e não raro
voltam para os exercícios estruturais ou ficam presos ao livro didático. Sabemos que esses
livros nem sempre servem aos interesses e necessidades dos alunos e que eles raramente
trazem atividades realmente comunicativas.
O que ensinamos
Se perguntarmos a qualquer professor de língua o que ele precisa
ensinar, ele vai prontamente responder que tem de desenvolver as quatro habilidades nos seus
alunos: a capacidade de ler, escrever, falar e ouvir. E se perguntarmos a ele o que exatamente
cada uma dessas habilidades significa, ele provavelmente não saberá explicar. Isso acontece
porque nós, professores, não sabemos, por exemplo, o que é leitura, quais as habilidades
cognitivas envolvidas nessa habilidade, que estratégias usamos quando lemos e que fatores
podem influenciar a leitura.
Isso não é nossa culpa. Algumas vezes realmente não percebemos que tantos fatores
estão envolvidos em uma tarefa ‘tão simples’ como a leitura (professores de língua deveriam
estar sempre aprendendo outras línguas para constantemente lembrar como isso é difícil).
Além disso, muitos professores não têm acesso aos resultados de pesquisas mais recentes.
Hoje em dia isso é fácil de resolver. Tesols, Laurels e outras associações podem ser de grande
ajuda e também podemos contar com as bibliotecas e a Rainha Internet, na qual podemos
encontrar discussões sobre qualquer assunto em que alguém puder pensar. (Há também
programas de desenvolvimento e aprimoramento de professores em algumas escolas de língua
como MAI, ICBEU e outras).
Podemos também culpar os livros didáticos porque a maioria deles não se interessa
muito pelas pesquisas. Eles usam o que está na moda e há muito mais de marketing do que
verdadeiras modificações nos livros. Muitas vezes tudo que eles fazem é mudar o nome de
coisas antigas (fora de moda) e apresentá-las como novidades. Para a maioria dos livros,
controlar sintaxe e vocabulário é suficiente. Não vou me estender nessa conversa sobre os
livros didáticos porque esse assunto merece uma conversa muito longa e, além disso, esse não
é o ponto específico sobre o qual devo falar aqui. Eu só gostaria muito que os professores
observassem bem os livros que usam para checar se eles realmente são o que dizem ser, para
checar também se eles propõem atividades e situações nas quais os alunos vão realmente usar
a linguagem em vez de apenas memorizar regras e diálogos, para tentar saber com que
concepção das quatro habilidades ele trabalha, entre muitas outras coisas.
Agora vou dar um exemplo da importância de sabermos a respeito dos fatores e
processos envolvidos em cada habilidade para a situação de ensino-aprendizagem. Durante os
últimos anos deixamos as atividades de escrita de lado, para o alívio dos professores.
A produção de textos escritos foi deixada de lado por muitas razões. Uma delas é
metodológica: “a começar pelo método audio-visual e durante a abordagem comunicativa,
demos muita importância à expressão oral e a escrita foi deixada a parte. Isso aconteceu
porque nas abordagens anteriores a essas foi dada muita atenção para a parte escrita. Numa
tentativa de compensar isso, colocamos muito peso no outro lado da balança. Agora
precisamos chegar ao equilíbrio” (COSCARELLI,1994).1
Outra razão que podemos mencionar é pessoal. “Muitos de nós não se sente
confortável quando se trata de escrever, nem mesmo na nossa língua materna, e isso se deve a
diferentes motivos: (1) escrever requer muito trabalho mental e nós somos um pouco preguiçosos; (2) temos medo de errar e isso aumenta quando sabemos que esses erros vão
ficar registrados numa folha de papel assinada por nós; (3) o modo como fomos ensinados a
escrever não foi muito adequado. Na escola tínhamos poucos minutos para escrever a respeito
de assuntos sobre os quais não queríamos falar ou sobre os quais nada tínhamos para falar,
para alguém que só estava interessado em encontrar muitos erros para corrigir. E o esforço
que fizemos durante a escrita, os assuntos que nos interessavam e as experiências que
realmente gostaríamos de compartilhar com nossos colegas? Ninguém ligava para elas! Os
professores geralmente liam nossos textos tão concentrados em encontrar erros de ortografia e
sintaxe que acabavam não ligando para a estrutura dos textos e algumas vezes nem para o
significado deles. Nós realmente passamos por momentos difíceis na escola” (COSCARELLI,
1994, op. cit.). Então, como não nos sentimos a vontade para escrever e pensamos que não
somos bons nisso, decidimos, na posição de professores, deixar a escrita de lado nas nossas
aulas.
Podemos apresentar ainda outra razão por que deixamos a escrita a parte, que pode ser
vista como uma conseqüência da terceira apresentada acima: ninguém nos ensinou a redigir
um bom texto. Estamos lutando com isso até hoje e ainda sentimos que não sabemos escrever
bem.
A única maneira de resolver esse problema é sabendo como a escrita funciona. Nós,
professores, precisamos saber pelo menos que existem condições em que a escrita
normalmente acontece. Só se escreve quando existe um propósito para isso, quando há um
recebedor (mesmo que seja o próprio autor), e quando há o que escrever (informação nova).
Precisamos também saber que escrever envolve a geração, seleção e organização de idéias.
Isso significa que escrever requer a produção de um rascunho que deve ser revisto e reescrito
mais de uma vez.
Além disso, precisamos saber como escrever um parágrafo, precisamos saber que um
texto é diferente de uma lista de sentenças e precisamos saber quais são os elementos
lingüísticos que fazem essa diferença (elementos coesivos, itens lexicais, advérbios de
seqüência, elementos dêiticos, anáforas, catáforas, elipses etc.)
As questões relativas aos ‘erros’ são outro ponto extremamente importante que todos
os professores precisam conhecer muito bem para saber o que fazer com eles. Devemos
pensar nos erros dos nossos alunos não como pecados mas como uma fonte muito preciosa de
informação sobre o processo de aprendizagem.
O mesmo acontece com relação às outras habilidades. O professor deve saber o que
está envolvido em cada uma delas a fim de envolver os alunos em situações que vão
possibilitar a eles desenvolver seus conhecimentos da língua. Isso não significa que
encontramos todas as respostas na teoria, mas pelo menos teremos uma concepção mais clara
do que cada habilidade é e dos fatores que podem influenciá-las. Com isso em mente será
mais fácil ajudar nossos alunos a encontrar seu próprio caminho nessa ainda nebulosa
aventura que é aprender uma língua estrangeira.
Voltemos então à pergunta maliciosa: os alunos aprendem o que os professores
ensinam? À vezes pode parecer que não estamos ensinando porque pensamos que temos de
ensinar a língua, isto é, suas estruturas e vocabulário; mas na verdade, o que temos de pensar
é que não estamos apenas ensinando a língua, estamos ensinando também, e talvez
principalmente, os alunos a aprenderem outra língua. Portanto, podemos dizer que os alunos
estão aprendendo o que estamos ensinando: estamos ensinando a eles a aprender uma língua. Ensinar, na minha opinião, é
criar nos alunos a necessidade de saber alguma coisa, criar a necessidade de aprender e
desenvolver neles a confiança de que eles podem aprender, e convencê-los de que eles são
responsáveis pelo próprio aprendizado. Criando essa atmosfera, podemos ajudá-los a ser
aprendizes autônomos. Assim, cada um poderá descobrir qual é, para ele, a melhor maneira
de aprender uma língua. Foi tomando como base esses conceitos de ensinar e aprender que
pude concluir que ensinamos e que nossos alunos aprendem o que ensinamos. Devo
acrescentar que esse é um assunto sobre o qual deveremos passar o resto de nossas vidas
pensando.
Disponível em: http://www.letras.ufmg.br/carlacoscarelli/publicacoes/SEMGERPO.pdf. Acesso em: 04/05/2015.
Imagem disponível em: http://bolsauniversitaria.com.br/blog/2012/05/25/ainda-nao-sabemos-o-que-fazer-com-alunos-que-nao-aprendem/. Acesso em: 04/05/2015.
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