terça-feira, 25 de agosto de 2015

GEOMETRIA EM SALA DE AULA


Dada a opção da professora, no episódio, por uma aula dialogada, um primeiro aspecto deve ser considerado: se as interações discursivas descritas, realizadas sob a forma de perguntas e respostas, cumprem o objetivo de tornar conhecidos os significados atribuídos pelas partes a um objeto de conhecimento, para revelar os pensamentos dos interlocutores, explicando-os melhor e clarificando-os nessa interação (BISHOP E GOFFREE, 1986). Ou, dito de outra forma, essas interações se constituem em um diálogo verdadeiro ou em um diálogo que Stubbs (1987) considera como artificial, uma vez que as perguntas feitas aos alunos não têm efetivamente a intenção de compreender o que eles pensam sobre o assunto em discussão, quais são as suas formas pessoais de lidar com o conhecimento matemático.
Alguns trechos dos diálogos - ocorridos na sala de aula enquanto a professora, com o auxílio de um modelo, no caso uma caixa em formato de um paralelepípedo, procura trabalhar com os alunos os conceitos de faces, arestas e vértices – mostram que nem sempre a professora procura compreender exatamente as dificuldades dos alunos com relação às noções/nomenclatura trabalhadas nas aulas anteriores. Muitas vezes, ela substitui o nome dado pelos alunos a um ente geométrico pelo nome correto, mas sem indagar-se e aos alunos o porquê do erro:

Profª: “Eu posso dizer que a aresta é o que?”
Alunos: “Vértice.”
Profª: “Vértice, vocês me disseram que é isso aqui! (mostrando no modelo um dos cantos da caixa). Tá, mas pensa bem, pra mim ter uma aresta, pra mim formar uma aresta o que que eu preciso ter?”
Alunos: “Faces...”
Profª: “Duas...”
Alunos: “Faces...”
Profª: “Duas faces?”.
Alunos: “Juntas.”
Profª: “Eu preciso ter duas faces juntas. Então eu posso dizer que uma aresta é o encontro das duas faces?”.
Alunos: “Pode.”
Profª: “Posso.

Observamos, neste trecho, que a professora não procura entender de fato o que as crianças estão pensando sobre os conceitos em questão, mesmo porque juntar duas faces sempre resulta numa aresta? Aliás, o que significa a palavra “juntas” nessa interação? Além disso, o fato da criança dar uma resposta usando uma palavra já utilizada pela professora, nem sempre implica em compreensão. Na continuação do diálogo, dá para perceber que as crianças de fato repetem sem compreender o que se está sendo discutido.

Profª: E como é o nome dessa ponta mesmo?”.
Alunos: “Vértice.”
Profª: “Aí pra mim ter um vértice o que que eu preciso ter?”
Alunos: “Duas faces”.

Notamos que os alunos continuam falando sobre aresta, mas a professora, sem se preocupar com isso, continua o diálogo.

Profª: “Eu preciso ter três arestas. Ó essa aresta aqui, essa aresta aqui e essa aresta aqui” (a professora mostra na caixa) “Eu quero que olhem pra cá porque eu estou mostrando na caixinha e eu acho que talvez seja mais fácil de entender, tá. Eu tenho notado que três arestas se encontraram e formaram o vértice, então eu posso dizer que o vértice é o que?”.
Alunos: “É o encontro de três arestas”.

Como a professora nem sempre estabelece a princípio qual a intenção do diálogo, qual a questão que ela pretende discutir, a interação parece prosseguir sem um rumo certo, de modo que se criam situações que não contribuem para a construção do conhecimento pelos alunos. É o que ocorre, por exemplo, na continuação da interação, quando ela procura mostrar que o vértice pode ser o ponto de encontro de mais do que três arestas, mas sem deixar isso claro logo de início, que ela está contestando essa definição de vértice de um poliedro, mas ao fazê-lo ela interrompe a questão e passa a fazer outras questões que inicialmente não parece ter alguma ligação com sua intenção, como podemos observar a seguir.

Profª: “É o encontro de três arestas. Vocês sabem o que é uma pirâmide não sabem? Quais as características de uma pirâmide?”.
Alunos: “Triangular....”
Profª: “As faces laterais elas se encontram no mesmo lugar. Esse mesmo lugar é também chamado do que?”.
Alunos: “Vértice.”
Profª: “De vértice. E o que mais que tem na pirâmide? Como é que são essas faces da pirâmide?”.
Alunos: “São triangular.”
Profª: “São triangular. Tem a parte de baixo não tem, que se chama base. Com pode ser a base de uma pirâmide?”
Alunos: “Quadrada, triangular...”
Profª: “Pode ser quadrada, triangular, o que mais? Hexagonal. O que é hexagonal?”
Alunos: “Seis lados”.
Profª: “Seis lados. Pode ser pentagonal. O que é pentagonal?”.
Alunos: “Cinco lados.”
Profª: “Porque o Brasil já foi pentacampeão na copa do mundo?”.
Alunos: “Porque ganhou cinco vezes”.
Profª: “E, aí eu quero saber uma coisa de vocês. Vocês me disseram que um vértice é o encontro de três arestas, certo! Verdade ou mentira?”.
Alunos: “Verdade!”
Profª: “Verdade. Vendo uma pirâmide de base triangular, vocês conseguem imaginar? Lá no livro de vocês na página cento e vinte e oito tem uma pirâmide de base triangular. Olhem o vértice que está em cima. Quantas arestas são necessárias para formar um vértice?”.
Alunos: “Três.”
Profª: “Três. Então continua sendo verdade o que vocês falaram pra mim?”.
Alunos: “Sim.”
Profª: “Continua, lógico. Tem a pirâmide de base quadrada, tão vendo ela lá. A segunda. É um quadrado a base não é? Tão vendo ela lá?”
Alunos: “Tamo.”
Profª: “A segunda é um quadrado a base, não é?”.
Alunos: “É”
Profª: “Pra ter o vértice, aquele lá de cima, quantas arestas se encontraram?”.
Alunos: “Quatro.”
Profª: “Então eu posso dizer que só três arestas é que formam um vértice?”.
Alunos: “Não.”
Profª: “Não. Podem ser três, mas pode ser quatro também. Vocês não têm também lá uma pirâmide de base pentagonal? Quantas arestas foram preciso para formar o vértice de cima?”
Alunos: “Cinco.”
Profª: “Então ó vértice...”
Aluno: “É o encontro de três ou mais arestas... ”
Profª: “Vértice é o encontro das arestas. Podem ser três arestas ou mais, tudo bem?”
Alunos: “Tudo.”

Finalmente chegou-se ao objetivo das interações: a conclusão sobre o conceito correto de vértice, o de ponto de encontro de três ou mais arestas. No entanto, o caminho que ela tomou para chegar até seu objetivo, feito sem que sua intenção ficasse muito clara desde o início, levou as crianças a fixar o conceito anterior, como podemos observar pela resposta dada pelas crianças quando ela retoma a questão, na aula seguinte, como mostra o trecho a seguir.

Profª: “Revisando hoje algumas coisas sobre a parte da geometria, é alguns conceitos importantes sobre as caixinhas trazidas em sala quem lembra? As partes, os elementos da caixinha do paralelepípedo? Tem três dimensões altura, largura e comprimento. Tem arestas, tem vértices e tem faces. Como é que agente pode falar que é a face. O que é as fa... as arestas e não as faces?”.
Aluno: “São as partes é... do é... ”
Profª: “É exatamente a linha que junta duas?”.
Alunos: “Faces.”
Profª: “Ou seja, são o encontro de duas faces. O que que é um vértice?”
Alunos: “É o encontro de três arestas. ”
Profª: “É o encontro de três arestas, só três arestas?”
Alunos: “Não.”
Profª: “Pode ser mais de três. Lembra que a gente viu as pirâmides quando tem quatro aresta, cinco arestas, seis arestas.

As respostas inesperadas dadas pelas crianças a uma questão feita pela docente nem sempre a fazem refletir sobre o que os alunos compreendem efetivamente a respeito dos termos utilizados, de modo que não servem como mote para ampliar ou retificar o conhecimento explicitado pelos alunos, como se pode observar nas interações anteriores e pelas seguintes:

Profª: “A pirâmide é formada somente por?”.
Alunos: “Poliedros.”

Neste ponto, como a resposta dada não era a esperada, a professora deveria indagar o que eles entendem por poliedros, porque eles acreditam que a pirâmide possa ser formada por poliedros, mas a professora praticamente repete a pergunta feita anteriormente:

Profª: “Será que pirâmide é formada por poliedros?”
Alunos: “Não. É tridimensional”.

As crianças em sua resposta acrescentam um outro conceito, o de tridimensionalidade, mas a resposta confusa da professora não garante que elas entendam a diferença existente entre figuras geométricas bi e tridimensionais, podendo isso, inclusive, levar as crianças a conclusões errôneas. Além disso, ela poderia ter explorado ainda que só o fato de ser tridimensional não garante que a figura seja um poliedro, citando exemplos de outras figuras tridimensionais.
Do ponto de vista lingüístico, uma ambigüidade é introduzida no discurso da professora quando ela diz “formada por figuras geométricas”, pois a palavra “formada” tem aqui qual significado?

Profª: “É tridimensional, mas ela é formada por figuras geométricas que são os triângulos e podem ser o quadrado, pentágono e assim por diante”.

Observamos que na continuação da interação a professora utiliza novamente a palavra “formada” sem se preocupar com seu significado nessa situação, nem sobre qual significado que os alunos poderiam estar dando a ela. E a explicação fica por aí.
Uma outra questão a considerar em relação às interações discursivas aqui analisadas é que, em vários momentos, as perguntas feitas pela docente já trazem embutidas em si mesmas as respostas. Assim, não se constituem de fato em oportunidades de reflexão coletiva, de estabelecimento de significados compartilhados pelos alunos, mas de meros instrumentos para manter a atenção da classe.
Por outro lado, muitas vezes a pergunta nem é elaborada, mas uma pausa, no final de sentença ou de uma palavra, implica num convite implícito para que os alunos as completem de alguma forma, numa versão do fenômeno que a Didática da Matemática francesa designa por efeito Topázio (BROUSSEAU, 2000).
Isso pode ser ilustrado pelo seguinte trecho do episódio, quando a professora tenta explicar o que é um cone:
Profª: “O que que diferencia uma pirâmide de um cone?”
Aluno: “Porque uma pirâmide é assim....(mostra com a mão).”
Profª: “Porque a base do cone é um círculo e isso faz com que parte lateral dele fique arredon...”
Alunos: “..dada.”
Profª: “Essas figuras que são arredondadas como o cone nós chamamos de corpos redondos. Se eu colocar ele deitado ele consegue rolar?”.
Alunos: “Consegue.”
Profª: “E a pirâmide. Se eu colocar a pirâmide deitada ela consegue rolar?”
Alunos: “Não.”
Na continuação do diálogo, volta-se a falar sobre o cone:
Profª: O que é poliedro. Nós vimos lá, alguém lembra?”
Aluno: “Sólidos geométricos...”
Profª: “São sólidos geométricos, formados por polígonos. E o que que são os polígonos? ”
Alunos: “As figuras geométricas, quadrado...”
Profª: “Quer dizer que pra fechar o sólido ou para fechar a caixinha eu só tenho figuras geométricas. Pra fechar o cone eu tenho só figuras geométricas? ”
Alunos: “Não.”
Profª: “Não, porque uma parte do cone não é uma figura geométrica ele tem o formato diferente.”
Alunos: “Que que é cone?”
Profª: “Sabe o chapeuzinho de festa.”
Alunos: “Há, eu sei”.

Observamos que os alunos, que há poucos instantes haviam respondido, por meio de efeito Topázio, que sua parte lateral (superfície lateral) tinha “forma arredondada”, nem mesmo sabiam o que era um cone...
E a professora, ao final do episódio, comenta:
Profª: [...] Alguma coisa a mais? Não? Estou vendo que pelo que parece vocês estão sabendo....

a)      As imprecisões com relação aos conceitos geométricos

Algumas observações devem ser feitas em relação ao tratamento da nomenclatura e dos conhecimentos geométricos acionados pela professora na interação com os alunos. A primeira delas deve-se ao fato de que, em suas falas, a professora, embora procure corrigir seus alunos, comete também alguns deslizes ao utilizar a nomenclatura geométrica, quando, em certas ocasiões, por exemplo, usa lado ao invés de face ao falar sobre algumas figuras geométricas tridimensionais.
Além disso, utiliza as expressões figuras geométricas, sólidos geométricos, entre outras, sem explicitar para os alunos a que entes geométricos elas se referem. Devemos reconhecer que a nomenclatura geométrica não é isenta de questionamentos, as definições não são muito precisas nos livros didáticos, quando não conflitantes. Parece-nos, no entanto, que no trabalho escolar é preciso assumir certas definições e usá-las coerentemente, a fim de não confundir ainda mais os alunos, que devem se familiarizar com nomes às vezes muito complicados para crianças ainda em processo de alfabetização.
Em várias partes do discurso fica evidenciado que a professora apresenta certas falhas ou imprecisões em relação ao conhecimento geométrico, como se pode observar no trecho a seguir:

Profª: “Então o cone pode ser chamado de poliedro?”.
Aluno: “Sim... Não”.
Profª: “Ele é uma figura tridimensional, mas ele não é um poliedro porque essa parte do cone bem arredondada não é uma figura geométrica”.

A professora nesse momento está se referindo a superfície lateral do cone, que é uma superfície bidimensional no espaço tridimensional, a qual, planificada, se constitui num setor circular. Assim, não fica claro se ela está considerando que um setor circular não é uma figura geométrica. E a interação continua

Profª: “Então o cone pode ser chamado de poliedro?”.
Aluno: “Sim... Não”.
Profª: “Ele é uma figura tridimensional, mas ele não é um poliedro porque essa parte do cone bem arredondada não é uma figura geométrica Então ele é uma figura tridimensional, mas ele não tem só figuras geométricas pra fechar ele. A gente também tinha falado de prisma.”
Alunos: “Prisma é... tem dois lados paralelos”.
Profª: “É uma coisa que tenha dois lados paralelos. O que que são paralelos?”
Aluno: “São lados que não se encontram.”.

As respostas dos alunos em relação ao que é um prisma contêm incorreções do ponto de vista geométrico da qual a professora nem se dá conta: não só eles se referem – e a professora aceita e repete sua frase, concordando com ela – a lados e não faces, como também, no caso dos paralelepípedos não temos só duas faces paralelas entre si, mas três pares de faces paralelas. De qualquer modo, a definição aceita pela professora, de  que prisma é uma figura com um par de faces paralelas não está correta porque, por exemplo, um tronco de pirâmide  também pode ter duas faces paralelas – as duas bases, a inferior e a superior.
A aula prossegue com a professora procurando exemplificar - utilizando como modelo a sala, suas paredes, o teto e piso - o que significam faces paralelas. Porém, o conceito de prisma com o uma figura tridimensional sempre com duas faces paralelas ficou.

Interações discursivas e construção do conhecimento geométrico.

Podemos, enfim, discutir se as interações promovidas pela linguagem e pela apresentação de uns poucos modelos de objetos geométricos que tiveram lugar entre a professora e seus alunos sobre o tema Figuras Geométricas ofereceram as oportunidades necessárias para que estes construíssem conhecimentos válidos sobre o tema.
O nosso entendimento é de que as novidades introduzidas na prática educativa (aula dialogada, apresentação de modelos) não foram suficientes para tal.  Como vimos, muitas respostas dos alunos assinalavam a necessidade de uma investigação mais aprofundada sobre seu entendimento das informações apresentadas, o que raramente ocorreu. Os alunos não foram solicitados a dar exemplos de suas afirmações, a explicá-las de qualquer modo e a professora muitas vezes respondeu, ela mesma, a questão que formulara.
Não pudemos notar, da parte da professora, a preocupação em compreender até que ponto seu discurso era de fato compreendido pelos alunos, que têm conhecimentos, experiência de vida e centros de interesse diferentes dos seus.
Além disso, o episódio deixou clara sua dificuldade – e a de tantos outros professores - em trabalhar com a geometria em sala de aula, de vez que seu conhecimento sobre o tema apresenta lacunas, imprecisões.
Um aspecto positivo no episódio é que, apesar das suas dificuldades e possíveis falhas, ela se dispõe a tratar, em sala de aula, de um tema visto por muitos professores como espinhoso.



Disponível em: www.sbembrasil.org.br/files/ix_enem/.../CC03272362800aT.doc. Acesso em: 25/08/2015.

Imagem disponível em: http://www.cnsd.com.br/pedagogico/ensino-fundamental-2/612-geometria-na-sala-de-aula.html. 
Acesso em: 25/08/2015.

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