GEOMETRIA EM SALA DE AULA
Dada a opção da
professora, no episódio, por uma aula dialogada, um primeiro aspecto deve ser
considerado: se as interações discursivas descritas, realizadas sob a forma de
perguntas e respostas, cumprem o objetivo de tornar conhecidos os significados
atribuídos pelas partes a um objeto de conhecimento, para revelar os
pensamentos dos interlocutores, explicando-os melhor e clarificando-os nessa
interação (BISHOP E GOFFREE, 1986). Ou, dito de outra forma, essas interações
se constituem em um diálogo verdadeiro ou em um diálogo que Stubbs (1987)
considera como artificial, uma vez que as perguntas feitas aos alunos não têm
efetivamente a intenção de compreender o que eles pensam sobre o assunto em
discussão, quais são as suas formas pessoais de lidar com o conhecimento
matemático.
Alguns trechos dos
diálogos - ocorridos na sala de aula enquanto a professora, com o auxílio de um
modelo, no caso uma caixa em formato de um paralelepípedo, procura trabalhar
com os alunos os conceitos de faces, arestas e vértices – mostram que nem
sempre a professora procura compreender exatamente as dificuldades dos alunos
com relação às noções/nomenclatura trabalhadas nas aulas anteriores. Muitas
vezes, ela substitui o nome dado pelos alunos a um ente geométrico pelo nome
correto, mas sem indagar-se e aos alunos o porquê do erro:
Profª:
“Eu posso dizer que a aresta é o que?”
Alunos:
“Vértice.”
Profª:
“Vértice, vocês me disseram que é isso aqui! (mostrando no modelo um dos cantos
da caixa). Tá, mas pensa bem, pra mim ter uma aresta, pra mim formar uma aresta
o que que eu preciso ter?”
Alunos:
“Faces...”
Profª:
“Duas...”
Alunos:
“Faces...”
Profª:
“Duas faces?”.
Alunos:
“Juntas.”
Profª:
“Eu preciso ter duas faces juntas. Então eu posso dizer que uma aresta é o
encontro das duas faces?”.
Alunos:
“Pode.”
Profª:
“Posso.
Observamos, neste trecho,
que a professora não procura entender de fato o que as crianças estão pensando
sobre os conceitos em questão, mesmo porque juntar duas faces sempre resulta
numa aresta? Aliás, o que significa a palavra “juntas” nessa interação? Além
disso, o fato da criança dar uma resposta usando uma palavra já utilizada pela
professora, nem sempre implica em compreensão. Na continuação do diálogo, dá para
perceber que as crianças de fato repetem sem compreender o que se está sendo
discutido.
Profª:
E como é o nome dessa ponta mesmo?”.
Alunos:
“Vértice.”
Profª:
“Aí pra mim ter um vértice o que que eu preciso ter?”
Alunos:
“Duas faces”.
Notamos que os alunos
continuam falando sobre aresta, mas a professora, sem se preocupar com isso,
continua o diálogo.
Profª:
“Eu preciso ter três arestas. Ó essa aresta aqui, essa aresta aqui e essa
aresta aqui” (a professora mostra na caixa) “Eu quero que olhem pra cá porque
eu estou mostrando na caixinha e eu acho que talvez seja mais fácil de
entender, tá. Eu tenho notado que três arestas se encontraram e formaram o
vértice, então eu posso dizer que o vértice é o que?”.
Alunos:
“É o encontro de três arestas”.
Como a professora nem
sempre estabelece a princípio qual a intenção do diálogo, qual a questão que
ela pretende discutir, a interação parece prosseguir sem um rumo certo, de modo
que se criam situações que não contribuem para a construção do conhecimento
pelos alunos. É o que ocorre, por exemplo, na continuação da interação, quando
ela procura mostrar que o vértice pode ser o ponto de encontro de mais do que
três arestas, mas sem deixar isso claro logo de início, que ela está
contestando essa definição de vértice de um poliedro, mas ao fazê-lo ela
interrompe a questão e passa a fazer outras questões que inicialmente não
parece ter alguma ligação com sua intenção, como podemos observar a seguir.
Profª: “É o encontro de
três arestas. Vocês sabem o que é uma pirâmide não sabem? Quais as características
de uma pirâmide?”.
Alunos: “Triangular....”
Profª: “As faces laterais
elas se encontram no mesmo lugar. Esse mesmo lugar é também chamado do que?”.
Alunos: “Vértice.”
Profª: “De vértice. E o
que mais que tem na pirâmide? Como é que são essas faces da pirâmide?”.
Alunos: “São triangular.”
Profª: “São triangular.
Tem a parte de baixo não tem, que se chama base. Com pode ser a base de uma
pirâmide?”
Alunos: “Quadrada,
triangular...”
Profª: “Pode ser
quadrada, triangular, o que mais? Hexagonal. O que é hexagonal?”
Alunos: “Seis lados”.
Profª: “Seis lados. Pode
ser pentagonal. O que é pentagonal?”.
Alunos: “Cinco lados.”
Profª: “Porque o Brasil
já foi pentacampeão na copa do mundo?”.
Alunos: “Porque ganhou
cinco vezes”.
Profª: “E, aí eu quero
saber uma coisa de vocês. Vocês me disseram que um vértice é o encontro de três
arestas, certo! Verdade ou mentira?”.
Alunos: “Verdade!”
Profª: “Verdade. Vendo
uma pirâmide de base triangular, vocês conseguem imaginar? Lá no livro de vocês
na página cento e vinte e oito tem uma pirâmide de base triangular. Olhem o
vértice que está em
cima. Quantas arestas são necessárias para formar um
vértice?”.
Alunos: “Três.”
Profª: “Três. Então
continua sendo verdade o que vocês falaram pra mim?”.
Alunos: “Sim.”
Profª: “Continua, lógico.
Tem a pirâmide de base quadrada, tão vendo ela lá. A segunda. É um quadrado a
base não é? Tão vendo ela lá?”
Alunos: “Tamo.”
Profª: “A segunda é um
quadrado a base, não é?”.
Alunos: “É”
Profª: “Pra ter o
vértice, aquele lá de cima, quantas arestas se encontraram?”.
Alunos: “Quatro.”
Profª: “Então eu posso
dizer que só três arestas é que formam um vértice?”.
Alunos: “Não.”
Profª: “Não. Podem ser
três, mas pode ser quatro também. Vocês não têm também lá uma pirâmide de base
pentagonal? Quantas arestas foram preciso para formar o vértice de cima?”
Alunos: “Cinco.”
Profª: “Então ó
vértice...”
Aluno: “É o encontro de
três ou mais arestas... ”
Profª: “Vértice é o
encontro das arestas. Podem ser três arestas ou mais, tudo bem?”
Alunos: “Tudo.”
Finalmente chegou-se ao
objetivo das interações: a conclusão sobre o conceito correto de vértice, o de
ponto de encontro de três ou mais arestas. No entanto, o caminho que ela tomou
para chegar até seu objetivo, feito sem que sua intenção ficasse muito clara
desde o início, levou as crianças a fixar o conceito anterior, como podemos
observar pela resposta dada pelas crianças quando ela retoma a questão, na aula
seguinte, como mostra o trecho a seguir.
Profª: “Revisando hoje algumas coisas
sobre a parte da geometria, é alguns conceitos importantes sobre as caixinhas
trazidas em sala quem lembra? As partes, os elementos da caixinha do
paralelepípedo? Tem três dimensões altura, largura e comprimento. Tem arestas,
tem vértices e tem faces. Como é que agente pode falar que é a face. O que é as
fa... as arestas e não as faces?”.
Aluno: “São as partes
é... do é... ”
Profª: “É exatamente a
linha que junta duas?”.
Alunos: “Faces.”
Profª: “Ou seja, são o
encontro de duas faces. O que que é um vértice?”
Alunos: “É o encontro de
três arestas. ”
Profª: “É o encontro de
três arestas, só três arestas?”
Alunos: “Não.”
Profª: “Pode ser mais de
três. Lembra que a gente viu as pirâmides quando tem quatro aresta, cinco
arestas, seis arestas.
As respostas inesperadas
dadas pelas crianças a uma questão feita pela docente nem sempre a fazem
refletir sobre o que os alunos compreendem efetivamente a respeito dos termos
utilizados, de modo que não servem como mote para ampliar ou retificar o
conhecimento explicitado pelos alunos, como se pode observar nas interações
anteriores e pelas seguintes:
Profª:
“A pirâmide é formada somente por?”.
Alunos:
“Poliedros.”
Neste ponto, como a
resposta dada não era a esperada, a professora deveria indagar o que eles
entendem por poliedros, porque eles acreditam que a pirâmide possa ser formada
por poliedros, mas a professora praticamente repete a pergunta feita
anteriormente:
Profª:
“Será que pirâmide é formada por poliedros?”
Alunos:
“Não. É tridimensional”.
As crianças em sua
resposta acrescentam um outro conceito, o de tridimensionalidade, mas a
resposta confusa da professora não garante que elas entendam a diferença
existente entre figuras geométricas bi e tridimensionais, podendo isso,
inclusive, levar as crianças a conclusões errôneas. Além disso, ela poderia ter
explorado ainda que só o fato de ser tridimensional não garante que a figura
seja um poliedro, citando exemplos de outras figuras tridimensionais.
Do ponto de vista
lingüístico, uma ambigüidade é introduzida no discurso da professora quando ela
diz “formada por figuras geométricas”, pois a palavra “formada” tem aqui qual
significado?
Profª:
“É tridimensional, mas ela é formada por figuras geométricas que são os
triângulos e podem ser o quadrado, pentágono e assim por diante”.
Observamos que na continuação
da interação a professora utiliza novamente
a palavra “formada” sem se preocupar com seu significado nessa situação, nem
sobre qual significado que os alunos poderiam estar dando a ela. E a explicação
fica por aí.
Uma outra questão a
considerar em relação às interações discursivas aqui analisadas é que, em
vários momentos, as perguntas feitas pela docente já trazem embutidas em si
mesmas as respostas. Assim, não se constituem de fato em oportunidades de
reflexão coletiva, de estabelecimento de significados compartilhados pelos
alunos, mas de meros instrumentos para manter a atenção da classe.
Por outro lado, muitas
vezes a pergunta nem é elaborada, mas uma pausa, no final de sentença ou de uma
palavra, implica num convite implícito para que os alunos as completem de
alguma forma, numa versão do fenômeno que a Didática da Matemática francesa
designa por efeito Topázio (BROUSSEAU, 2000).
Isso pode ser ilustrado
pelo seguinte trecho do episódio, quando a professora tenta explicar o que é um
cone:
Profª:
“O que que diferencia uma pirâmide de um cone?”
Aluno:
“Porque uma pirâmide é assim....(mostra com a mão).”
Profª:
“Porque a base do cone é um círculo e isso faz com que parte lateral dele fique
arredon...”
Alunos:
“..dada.”
Profª:
“Essas figuras que são arredondadas como o cone nós chamamos de corpos
redondos. Se eu colocar ele deitado ele consegue rolar?”.
Alunos:
“Consegue.”
Profª:
“E a pirâmide. Se eu colocar a pirâmide deitada ela consegue rolar?”
Alunos:
“Não.”
Na
continuação do diálogo, volta-se a falar sobre o cone:
Profª:
O que é poliedro. Nós vimos lá, alguém lembra?”
Aluno:
“Sólidos geométricos...”
Profª:
“São sólidos geométricos, formados por polígonos. E o que que são os polígonos?
”
Alunos:
“As figuras geométricas, quadrado...”
Profª:
“Quer dizer que pra fechar o sólido ou para fechar a caixinha eu só tenho
figuras geométricas. Pra fechar o cone eu tenho só figuras geométricas? ”
Alunos:
“Não.”
Profª:
“Não, porque uma parte do cone não é uma figura geométrica ele tem o formato
diferente.”
Alunos:
“Que que é cone?”
Profª:
“Sabe o chapeuzinho de festa.”
Alunos:
“Há, eu sei”.
Observamos que os alunos, que há
poucos instantes haviam respondido, por meio de efeito Topázio, que sua parte
lateral (superfície lateral) tinha “forma arredondada”, nem mesmo sabiam o que
era um cone...
E a professora, ao final
do episódio, comenta:
Profª: [...] Alguma coisa
a mais? Não? Estou vendo que pelo que parece vocês estão sabendo....
a) As imprecisões com relação aos
conceitos geométricos
Algumas observações devem
ser feitas em relação ao tratamento da nomenclatura e dos conhecimentos
geométricos acionados pela professora na interação com os alunos. A primeira
delas deve-se ao fato de que, em suas falas, a professora, embora procure
corrigir seus alunos, comete também alguns deslizes ao utilizar a nomenclatura
geométrica, quando, em certas ocasiões, por exemplo, usa lado ao invés de face
ao falar sobre algumas figuras geométricas tridimensionais.
Além disso, utiliza as
expressões figuras geométricas, sólidos geométricos, entre outras, sem
explicitar para os alunos a que entes geométricos elas se referem. Devemos
reconhecer que a nomenclatura geométrica não é isenta de questionamentos, as
definições não são muito precisas nos livros didáticos, quando não conflitantes.
Parece-nos, no entanto, que no trabalho escolar é preciso assumir certas
definições e usá-las coerentemente, a fim de não confundir ainda mais os
alunos, que devem se familiarizar com nomes às vezes muito complicados para
crianças ainda em processo de alfabetização.
Em várias partes do
discurso fica evidenciado que a professora apresenta certas falhas ou
imprecisões em relação ao conhecimento geométrico, como se pode observar no
trecho a seguir:
Profª: “Então o cone pode
ser chamado de poliedro?”.
Aluno: “Sim... Não”.
Profª: “Ele é uma figura
tridimensional, mas ele não é um poliedro porque essa parte do cone bem
arredondada não é uma figura geométrica”.
A professora nesse
momento está se referindo a superfície lateral do cone, que é uma superfície
bidimensional no espaço tridimensional, a qual, planificada, se constitui num
setor circular. Assim, não fica claro se ela está considerando que um setor
circular não é uma figura geométrica. E a interação continua
Profª:
“Então o cone pode ser chamado de poliedro?”.
Aluno:
“Sim... Não”.
Profª:
“Ele é uma figura tridimensional, mas ele não é um poliedro porque essa parte
do cone bem arredondada não é uma figura geométrica Então ele é uma figura
tridimensional, mas ele não tem só figuras geométricas pra fechar ele. A gente
também tinha falado de prisma.”
Alunos: “Prisma é... tem
dois lados paralelos”.
Profª: “É uma coisa que
tenha dois lados paralelos. O que que são paralelos?”
Aluno: “São lados que não
se encontram.”.
As respostas dos alunos
em relação ao que é um prisma contêm incorreções do ponto de vista geométrico
da qual a professora nem se dá conta: não só eles se referem – e a professora
aceita e repete sua frase, concordando com ela – a lados e não faces, como
também, no caso dos paralelepípedos não temos só duas faces paralelas entre si,
mas três pares de faces paralelas. De qualquer modo, a definição aceita pela
professora, de que prisma é uma figura
com um par de faces paralelas não está correta porque, por exemplo, um tronco
de pirâmide também pode ter duas faces
paralelas – as duas bases, a inferior e a superior.
A aula prossegue com a professora
procurando exemplificar - utilizando como modelo a sala, suas paredes, o teto e
piso - o que significam faces paralelas. Porém, o conceito de prisma com o uma
figura tridimensional sempre com duas faces paralelas ficou.
Interações discursivas e
construção do conhecimento geométrico.
Podemos, enfim, discutir
se as interações promovidas pela linguagem e pela apresentação de uns poucos
modelos de objetos geométricos que tiveram lugar entre a professora e seus
alunos sobre o tema Figuras Geométricas ofereceram as oportunidades necessárias
para que estes construíssem conhecimentos válidos sobre o tema.
O nosso entendimento é de
que as novidades introduzidas na prática educativa (aula dialogada,
apresentação de modelos) não foram suficientes para tal. Como vimos, muitas respostas dos alunos
assinalavam a necessidade de uma investigação mais aprofundada sobre seu
entendimento das informações apresentadas, o que raramente ocorreu. Os alunos
não foram solicitados a dar exemplos de suas afirmações, a explicá-las de
qualquer modo e a professora muitas vezes respondeu, ela mesma, a questão que
formulara.
Não pudemos notar, da
parte da professora, a preocupação em compreender até que ponto seu discurso
era de fato compreendido pelos alunos, que têm conhecimentos, experiência de
vida e centros de interesse diferentes dos seus.
Além disso, o episódio
deixou clara sua dificuldade – e a de tantos outros professores - em trabalhar
com a geometria em sala de aula, de vez que seu conhecimento sobre o tema
apresenta lacunas, imprecisões.
Um aspecto positivo no
episódio é que, apesar das suas dificuldades e possíveis falhas, ela se dispõe
a tratar, em sala de aula, de um tema visto por muitos professores como
espinhoso.
Disponível em: www.sbembrasil.org.br/files/ix_enem/.../CC03272362800aT.doc. Acesso em: 25/08/2015.
Imagem disponível em: http://www.cnsd.com.br/pedagogico/ensino-fundamental-2/612-geometria-na-sala-de-aula.html.
Acesso em: 25/08/2015.
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