terça-feira, 10 de março de 2015

ALEGRIA NA EDUCAÇÃO

Leila Lurdes Gerlach Riger


Fidelidade, amizade, cômico, riso, alegria, demência, loucura, gestos, charme, felicidade. De Aristóteles a Deleuze, com paradas estratégicas em Kant e Hegel serão abordados os conceitos acima para falar do papel da alegria na educação.
Quando plausível, o impossível se deve
preferir a um possível que não
convença.
Aristóteles


Aristóteles na Poética aponta Homero como responsável pelo surgimento do cômico. Homero acrescentou a linguagem cômica à tragédia. Para Aristóteles, "a comicidade, com efeito, é um defeito e uma feiura sem dor nem destruição; um exemplo óbvio é a máscara cômica, feia e contorcida, mas sem expressão de dor".

O esforço digno de riso está em fazer de um estilo, de um procedimento algo que ele não é, e que ninguém naquele momento espera que ele seja ou se faça assim. Um poema transformado em paródia, versos sendo alongados, fábulas tradicionais dramatizadas com linguagem que não a da tragédia - tudo imprevisto e inesperado. Aí a comicidade: imitar pessoas inferiores não ressaltando seus maus hábitos, vícios ou vergonha, mas tratá-los como algo feio, errado. Mais precisamente o desfecho que se dá a esse feio, errado, é que é o irracional, porque não pensado. Para Aristóteles, "é ridículo, sim, dar na vista pelo uso dessa facilidade, mas moderação se espera em todos os aspectos da linguagem; quem usasse, fora de propósito, metáforas, termos raros e demais adornos, obteria o mesmo efeito que se fizesse visando ao cômico".

Kant, por sua vez, minimiza o cômico, não chega a usar diretamente o termo. Na Crítica da Faculdade do Juízo, ele afirma que:
"Em tudo o que pode suscitar um riso vivo e abalador tem que haver algo absurdo (em que, portanto, o entendimento não pode em si encontrar nenhuma complacência). O riso é um afeto resultante da súbita transformação de uma tensa expectativa em nada. Precisamente esta transformação, que certamente não alegra o entendimento, alegra, contudo indiretamente por um momento de modo muito vivo".

O riso necessita do sério, do engano, da tentativa, do rememorar, do súbito, da abstração, do ânimo, do corpo e da harmonia interna para promover-se. Os exemplos kantianos para ilustrar sua afirmativa são, primeiramente, o europeu e o índio; na sequência o herdeiro e as carpideiras; e, finalmente, o finório e sua peruca. Em comum nos exemplos de Kant, além do riso, o prazer e o desfecho no "nada". No primeiro exemplo o riso e o prazer afetuoso após a expectativa tensa com um desfecho repentino "em nada". No segundo exemplo o riso ruidoso e o prazer que advém da espera, que também se transforma repentinamente "em nada". Por último o riso e o prazer por causa do "desacerto em relação a um objeto". Temos movimentos no riso kantiano, movimentos "proveitosos à saúde": "sucessão de tensão e distensão"; ricocheteamento; "oscilação".

O riso, parafrasendo Kant, deveria ter-nos sido dado pelo céu como contrapeso às muitas misérias da vida.

O espaço do humorístico seria entre a arte de ser ingênuo e a arte de ser caprichoso. O humor cabe mais à arte agradável do que à arte bela, está em um meio-termo, mas, por conta do seu objeto - o riso -, pende para o lado da arte agradável.

Para Hegel, tal qual Aristóteles e Kant, conceitos como cômico, alegria, riso, sorriso, são ingredientes do universo da arte. É na Estética que os conceitos são trazidos à tona. O conceito de cômico aparece como sujeito que representa (no sentido de atuar), dramas (pág. 234). Outra forma que Hegel introduz o cômico é como estilo onde "não deve o páthos ser nem uma simples estultícia nem um capricho" (pág. 235). Ou então em contraposição a outro estilo, por exemplo, com o irônico no tratamento das diferenças: elas "incidem essencialmente sobre o conteúdo do que se destrói" (pág. 92). A saber, o cômico destrói "o que é desprovido de valor em si, o que se manifesta oco e vazio, mas abrange coisas realizadas e excelentes" (pág.176).

A alegria surge como paixão que tem a possibilidade de invadir a alma e como conteúdo de um sentimento concentrado que pode libertá-la, e algo a ser extraído do ideal- sempre por meio da arte. O imprevisível é que pode dar ares de cômico e acrescentar a alegria. Hegel exemplifica com o caso do poeta, que ao invés de versejar, "canta como as aves nas ramagens". Seu alegre descuido oferece-se-lhe como um conteúdo interior que exteriorizado, goza".(pág. 279)

A alegria também está na submissão, no lamento e na falta de contenção. Ali se apresenta na forma de sorriso. O sorriso demonstra serenidade, tranquilidade, segurança. Contudo Hegel ressalta:

"Mas não deve o sorriso ser uma simples manifestação sentimental, não deve provir da vaidade do sujeito, não deve resultar de uma veleidade interessada em mostrar que se está acima das pequenas misérias e sensações subjetivas; é preciso que o sorriso signifique o triunfo e a liberdade do belo sobre todas as dores (...)".

O riso foi dado ao homem primeiramente em criança, criança enquanto devir-criança, com as características que se dão no seu processo, a saber: "são de soar e sabem de sabor; ocupam o espaço em intensidade; são portadoras de uma língua menor; possuem uma vitalidade criadora".

Nota

"Devir-criança é entrar em uma zona de vizinhança e indiscernibilidade na qual não seja possível distinguir-se de uma criança (...). Devir-criança é uma figura da alteridade, isto é, o Outrem que expressa um mundo possível para as formas de viver e pensar a educação. A criança enquanto devir-criança ilimitado, que se introduz na educação, é condição de possibilidade de outra educação porque é um modo de experimentar o advento de outra educação possível". JODAR, F. Devir-Criança: experimentar e explorar outra educação.Educação & Realidade - v.27, n.2. Jul/Dez. Porto Alegre: Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Faculdade de Educação, 2002. p.31-45
As crianças são de soar como os sinos. Emitem sons. Produzem sons. Retumbam. Ecoam. Divulgam-se. Espalham-se. Tangem. Gracejam. Riem! São estrangeiros na língua que ainda será sua.

"Seu saber é o do desejo e da alegria. E a alegria, como sustenta Spinoza, é sempre boa, é vida que resiste à morte. A vitalidade da criança é milagre que rompe a velha ordem das coisas. A criança: capacidade de regressar eternamente à vida, alegria que afirma a vida no real. Seu dizer sim à vida, em sua modesta potência, é impugnação da tristeza e da servidão. Aquilo que ao homem lhe é concedido apenas uma vez, foi lhe dado pela primeira vez à criança. Trata-se da capacidade de manter transações com a liberdade e a alegria, a felicidade e o gozo".
Ruptura que gera nova idade, idade de mundo. O regresso é metafórico. A criança não se desterritorializa, ela não se afasta da vida, ela se apega sempre, sentido do eterno, ela se reterritorializa. Mas não como raiz arborescente. A alegria é a linha de fuga que fixa a criança, não como radícula, folha dentro do embrião que só poderá vir a ser folha, como algo que sempre está ali, sem por isso ser dali para ser algo diferente depois. A criança que sempre está sendo criança, ela não é. Não há o definitivo. A criança tem capacidade rizomática.
Criança-platô. Ela é toda uma "multiplicidade conectável com outras hastes subterrâneas superficiais de maneira a formar e estender um rizoma". A criança não faz conexão entre liberdade, alegria, felicidade, gozo, gozo, alegria, felicidade, alegria, liberdade, felicidade... Ela é a conexão.

A alegria é o conceito de resistência e vida, é tudo o que consiste em preencher, em efetuar uma potência. É a seiva que vai desobstruir os vasos condutores primitivos do rizoma. Fatos, momentos, podem ser acrescentados à alegria, mas não instituí-la. A alegria é exercício de desformalização: a alegria tira da fôrma, tira a forma, [dês] forma, [re] forma, (...), ri da forma.

O PAPEL DA ALEGRIA NA EDUCAÇÃO, OU DA ALEGRIA
Talvez tivéssemos de deixar de ser professores, para poder aprender a formular um pensamento em cujo interior ressoe, desembaraçadamente, o riso.
Jorge Larrosa
Ir e vir, devir. Do cômico de Aristóteles para o prazer de Kant. Da alegria de Hegel ao riso de Deleuze. Não necessariamente nesta ordem, e não necessariamente com ordem. O que usufruir, ou como usufruir desse passeio rizomático para pensar a educação?
Para Aristóteles o cômico não subentende a alegria. Está atrelado à arte. Abarca o ridículo, a loucura e o lamento. Para Kant o cômico fica subentendido. Mostra-se o riso de mãos dadas com o prazer, acompanhado pelo humor, com vistas à saúde, sem desprender-se da arte. Hegel vai do cômico à alegria, da alegria ao sorriso, do sorriso ao riso, sem sair da arte. Deleuze, da fidelidade para a amizade, da amizade ao cômico, do cômico ao riso. Arte?
Se considerarmos, não forçosamente, a educação como uma arte, basta resgatarmos de cada obra citada o que nos interessa para olhar para a educação. Aristóteles escreveu sobre a educação, mas não na Poética. Kant pensou a educação... Porém, não na Crítica da Faculdade do Juízo. E o que dizer de Hegel na Estética? Deleuze dedicou-se no Abecedário, mais exatamente no "P" de professor a comentar-se professor. Contudo, em "F" de fidelidade, a intenção não era falar sobre a educação... Plagiando Silvio Gallo, ou como diria Deleuze, roubando-o,
"Talvez, aqueles que não se debruçaram sobre a problemática educacional tenham mais a dizer aos educadores do que podemos imaginar. A razão disso? O inusitado. O imprevisto. O diferente. O que as ideias, os conceitos, as posições deste autor que, não tendo se colocado diretamente as questões com as quais lidamos, podem nos fazer pensar a partir de nossos próprios problemas".

Qual é, portanto, a inovação aqui? Nenhuma. Não é essa a intenção. Quero apenas fazer um ensaio. Se a sala de aula é o lugar do encontro, se muitos alunos são amigos entre si e do professor, será que antes desse encontro eles se perguntam "o que nos fará rir hoje?". Gosto de perguntas. Partindo da pergunta deleuziana, abro o meu leque: Onde riremos hoje? No corredor? No pátio? Na sala de aula? Como vamos rir? Como fazer uso do riso na prática educativa? O que seria a pedagogia da alegria? Quem fará as perguntas? O professor? O aluno? Ou o professor com o aluno?

Se a educação é concebida como "criação de novas formas de fazer, pensar e sentir,capazes de resistir a um modo de existência que aprisiona a educação", e a alegria, "deleuzianamente" falando, é resistênciaé vida, podemos pensar a alegria como um momento a ser valorizado, ou pelo menos revisto na prática educativa? A alegria vai além do tornar capaz a resistir, é a própria resistência; não é um modo de existência, é vida! Não consigo pensar no cômico, sem o riso. Não consigo pensar a amizade sem o riso. Não consigo pensar o riso sem a alegria. A sala de aula tem o cômico, a amizade, o riso e a alegria. É preciso o agenciamento. Pensar a educação como algo que pulsa alegremente, cheio de energia, pensar o este e aquele, sem o localizar, fixar. Não a sala de aula cá, o ato educativo lá. É o "entre" que faz a educação e seus fluxos.

Disponível em: http://www.educacaopublica.rj.gov.br/biblioteca/filosofia/0032_06.html. Acesso em: 10/03/2015.

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