ENSINAR TUDO A TODOS É POSSÍVEL?
Profa. Dra. Andréa Serpa / UFF
A alfabetização das crianças das classes populares vem sendo um tema de debate
que extrapola o campo da Pedagogia e ganha interlocutores preocupados e atentos oriundos
da sociologia, da economia, da psicologia, da política. Ongs, sindicatos, associações de
moradores, juizes e promotores, sujeitos dos mais diferentes campos de atuação e com as
mais diferentes formações discutem hoje a questão: por que a escola não alfabetiza estas
crianças direito?
A chegada destes interlocutores, muitas vezes como gestores da educação, retoma
questões históricas e nos obriga a buscar compreender e refletir sobre paradigmas que, no
campo da educação já foram objeto de análises e críticas profundas.
Paradigmas que
perdem sua origem nos séculos passados mas que se tornam cada vez mais
contemporâneos.
Um destes paradigmas resistentes ao tempo, muito bem sintetizado por Comênius
em sua Didáctica Magna : “ensinar tudo a todos”, mostra toda sua força histórica quando
continua se fazendo presente nos projetos – dos mais liberais aos mais progressistas –
defendidos para a Educação Brasileira.
Este paradigma esconde em suas dobras de nobreza – alcançar uma “igualdade entre
os homens” através da educação – a crença de que existe a possibilidade, ou ela assim é
desejada, de termos uma sociedade igualitária, pelo menos no que diz respeito a
distribuição de conhecimento.
No entanto, a perspectiva de um conhecimento universal que
forme um sujeito igualmente universal, não tem haver necessariamente com igualdade, mas
com homogeneidade e com as concepções colonialistas que de certa forma nos
acompanham desde o surgimento desta nação. O conhecimento não vem sendo utilizado –
históricamente – para igualar mas para diferir e excluir.
Em relação as ciências e principalmente as tecnologias, tanto especialistas como
vozes correntes na sociedade recebem e até esperam com certa euforia, inovações, novas
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Artigo publicado em Presença Pedagógica nº 104 mar/abr de 2012
descobertas, novas e revolucionárias teorias. Mesmo com o fracasso de tantas experiências
– medicamentos que nos envenenam, aparelhos que se mostram deficientes ou inúteis com
o tempo – os olhares voltam-se para frente, para os desafios que os nossos tempos nos
impõem.
Mas quando falamos de Educação são muitos os discursos que voltam-se
saudosistas por uma escola medieval, por uma escola conservadora em forma e conteúdo,
escola de um tempo e de mundo que não existindo mais, se recusa a morrer. A produção
científica que busca por novos caminhos para solucionar antigos problemas, que em tantas
ciências é virtude, no campo da educação é visto com desconfiança e muitas vezes
menosprezado, produzindo uma eterno volta a antigos modelos e soluções já tentadas e
fracassadas.
O pensamento colonial se recusa a morrer. Ainda busca decidir quais são os
conhecimentos legítimos, quais são as formas corretas de estar no mundo, quais são os
saberes válidos, quem são as pessoas válidas. Ainda busca ajustar os desajustados, treinar
os incapazes, adaptar os inaptos. Ainda busca civilizar os selvagens e criar um mundo a sua
imagem e semelhança. Impor seu Deus, sua lógica, sua história, sua cultura, sua verdade.
Todos devem aprender a ler e escrever.
Eu defendo e concordo com a premissa. E
defendemos uma alfabetização que considere os usos sociais da leitura e da escrita, mas
desconsideramos muitas vezes que para milhares de sujeitos ela não é de fato, uma
presença, e tampouco, uma ausência. Que a vida social, no dia-a-dia dos cidadãos é tecida
por diferentes práticas e que nem todas se organizam em torno da escrita, o que não
significa que não exista organização alguma, ou produção de conhecimento algum.
O
paradigama do “todos” nos impede de compreender que este “todos” não existe, e pensar
alternativas pedagógicas eficiêntes para educar sujeitos diversos que são espacialmente
localizados e historicamente datados. Insistir na escola única, no projeto único, é insistir na
exclusão de milhares de sujeitos, insistir na impossibilidade de outros projetos serem bem
sucedidos.
Ou seja, as crianças, independente dos conhecimentos que possuam, no momento
que são confrontadas com a cultura escolar, são diagnosticadas imediatamente pela
distância entre a sua cultura – ou “ausência de cultura” como normalmente ouvimos – e
certo tipo de cultura letrada representada pela escola. São avaliadas em relação as suas
ausências, aquilo que deveriam saber e não sabem, deveriam ser e não são.
Aquelas crianças que tem a oportunidade de conviver (intensa e amplamente) com a
circulação da escrita, encontram na escola a legitimação de sua cultura, de seu lugar social.,
como tão bem nos ensinou Freire. Às outras – que são muitas – resta caminhar, tantas vezes
aos tropeços, buscando alcançar as primeiras, buscando saber um pouco do que estas
sabem, ser um pouco o que estas são, para um dia, com muito esforço e alguma sorte, se
tornarem “quase iguais”. Para isso, entretanto, precisam vencer os desafios impostos pela
escola: ajustarem-se as suas normas, lógicas, cultura, mesmo que lhes pareçam absurdas ou
sem sentido.
Como professora e como pessoa alfabetizada que sou, valorizo e defendo que é um
direito de todo e qualquer cidadão aprender a ler e escrever. Contudo não penso que ele
deixa de ser cidadão porque não lê ou escreve, ou porque a leitura e a escrita não possuem
para ele o sentido que possuem para mim.
Prefiro refletir como esta prática social vai adquirindo ou não sentido para cada
sujeito, ao invés de lhe atribuir um sentido mágico, intrinseco a sua própria natureza, se tem
valor para mim, é porque tem valor para todos e pronto! Prefiro compreender o que
representa para cada sujeito, inserido em diferentes grupos sociais o que representa a leitura
e a escrita para ele e seu grupo, me parece ser uma questão primordial para refletir sobre o
ensinoaprendizado desta prática por este sujeito e seu grupo social. Descobrir com eles os
muitos sentidos, valores, limites e possibilidades que a escrita possui, não apenas para mim,
mas para nós.
Quando deixamos o olhar vagar longe pela história da humanidade, vemos que a
necessidade – objetiva e subjetiva – prescede a produção do conhecimento.
O cotidiano, a
vida em sua materialidade, as relações, vão impondo aos sujeitos desafios que exigem deles
respostas, que exigem que eles criem, inventem, comuniquem, expressem, interajam. Por
isso criamos religião, ciência, filosofia, mito e arte. Por isso criamos as diferentes
linguagens. São nestes processos de interação com o mundo e com os outros o
conhecimento foi e continua sendo produzido. “Desejo, necessidade, vontade”... e claro,
possibilidade. Se na vida o conhecimento é fruto das perguntas que o mundo nos faz, na
escola ele se torna muitas vezes, respostas a perguntas que não foram feitas. Questões que
não são nossas, que não nos tocam ou interessam.
A invenção da escola faz com que uma parcela – pequena – da sociedade imponha
um conhecimento a “todos” sem a possibilidade de discussão desse “todos” sobre a
necessidade ou desejo desse conhecimento. E esta forma autoritária de selecionar entre
milhões de informações, conhecimentos e formas de aprender aquela que deve ser ensinada
a “todos” resiste aos avanços da ciência e tecnologia, resiste ao caminhar da própria
história. Em um mundo (ocidental) que avança nas discussões sobre o respeito as
diferenças, que discute a globalização e o multiculturalismo, que começa a compreender a
pluralidade de formas de existência o paradigma do “tudo” e do “todos” resiste e continua
presente no pensamento pedagógico contemporâneo trazendo em sua bagagem as mesmas
velhas fórmulas, conceitos e práticas.
Pensemos nos usos e formas sociais da escrita no mundo letrado hoje. Onde se
encaixa o “treino” da caligrafia legível e eficiente? E por que esta seria uma capacidade
relevante para as crianças do século XXI frente aos profundos desafios de comunicação,
que acreditamos, terão pela frente? De que forma este “treino” escrevendo repetitivamente
letras e palavras articula-se com o aprendizado social da lingua escrita? Será que
realemente é isso que permitirá a ela escrever por mais tempo? Ou o que permitirá a ela
escrever será ter o que dizer, a necessidade e o desejo de dizê-lo pela escrita? Será que esta
é uma opção pedagógica fundamental para o ensino da leitura e da escrita? Principalmente
quando temos majoritariamente escolas de horário parcial onde nos falta tempo para tantas
outras práticas mais significativas?
O paradigma de que existe um “todos”, uma identidade universal que deve nos
unificar e diferenciar, e que se não existe deve ser criada, é um dos grandes marcos da
invensão da escola. Todos devem saber o mesmo. Todos devem saber o mesmo, ao mesmo
tempo. Todos devem saber o mesmo, ao mesmo tempo e da mesma forma. No final
avaliamos se conseguimos fazer com que “todos” possuam essa identidade universal,
quanto mais proximos do que desejamos, mais sucesso tivemos.
Palavras como controle, monitoramento, adquação ainda são recorentes em textos e
documentos voltados para a educação. Não é admitido nada que ameaçe o controle sobre o
que a criança aprende ou desenvolve na escola. O projeto que “alguns” estabelecem para
“todos”.
Hoje ao invês de soldados, os técnicos, os especialistas, os supervisores ficam a
postos de sentinela ao fundo de nossas salas para garantirem a “ordem e o progresso” de
seus projetos salvadores.
No entanto esta obcessão por controle não vem produzindo uma escola melhor, ao
contrário, vem produzindo relações pouco produtivas pedagogicamente, sufocado o
ambiente escolar com competições, humilhações e revoltas, tornando cada vez mais difíceis
relações que permitam aprendizagens significativas. Para tristeza de Freire, uma escola
onde somos cada dia menos “gente” e cada dia mais “índices”.
O paradigma que de que deve-se caminhar do mais simples para o mais complexo,
perpassa as teorias e as práticas escolares impondo um trabalho fragmentado em níveis,
etapas ou unidades de progressão que reduzem a complexidade do processo de
aprendizagem a comportamentos mensuráveis, que devem ser produzidos em um tempo
fixo por “todos” os sujeitos, para que estes recebam a chancela da “normalidade”.
A exemplo dos procedimentos Behavioristas, se não podemos mensurar ou controlar
o que é subjetivo, ignoramos, e passamos a compreender o objetivo como expressão da
realidade. E o ser objetivo em Educação vem sendo compreendido como estabelecer,
independente de todas as milhares de variavéis sociais, culturais e econômicas, parâmetros
universais que possam ser medidos em instrumentos igualmente único para “todos”.
Contudo, não existe necessidade de controle – principalmente externo – onde existe
compromisso e construção coletiva. Quando todos participam, todos avaliam o processo,
conhecem e reconhecem de perto suas possibilidades e limites. Discutem suas fragilidades,
pensam alternativas. Os mecanismos externos de controle não vem tornando a escola
pública mais democrática ou mais transparente, ao contrário, vem produzindo mais
sombras: desconfianças, fraudes e máscaras. Onde menos sujeitos participam da discussão
na produção de soluções e mais sujeitos participam da fiscalização de resultados.
Uma escola de qualidade não precisa “provar” que possui qualidade com tabelas,
índices ou números. Ela é reconhecida pela comunidade escolar que a produz, pelos alunos
que forma.
O conhecimento, quando efetivamente produzido, transforma as pessoas,
transforma o mundo ao seu redor. Ele brilha. O sujeito aprendente brilha. Quantas vezes,
nós professoras observamos que quando o que uma criança aprende faz sentido para ela, ela
se enche de alegria e grita ao mundo: - Eu aprendi!!!
Em nossas escolas, no entanto, tantas vezes vemos este brilho ser eclipsado, por
metas que precisam ser atingidas, por níveis que precisam ser superados, por
conhecimentos opacos, por treinos repetitivos e vazios.
Dizem que a função da avaliação diagnóstica é verificar as capacidades que o aluno
possui ao iniciar cada nível. Só esquecem de dizer que nem todas as capacidades avaliadas
serão consideradas relevantes, que apenas algumas capacidades interessam a escola e a
cultura escolar, e caso não as possua, o aluno é tido como um incapaz. Esquecem de dizer
que deve possuí-las dentro de um certo prazo de validade, uma temporalidade
arbitrariamente definida, e caso não consiga, o aluno é tido como um fracassado. Porque
não conseguiu ser como “todo mundo” e aprender no “tempo certo” o que deveria saber.
A fórmula “ensinar tudo a todos, em etapas de tempo pré-estabelecidas” vem sendo
responsável pela produção do chamado fracasso escolar há algumas décadas. Apesar de
resistente é um paradigma que precisamos rever. Precisamos aprender mais com a nossa
história para que não continuemos (re)produzindo século XXI adentro os mesmos
mecanismos de fracasso e exclusão, insistindo nos mesmos projetos, cometendo os mesmos
equívocos.
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ESTEBAN, Maria Teresa.(org). Escola, currículo e avaliação. São Paulo: Cortez, 2005.
Disponível em: http://www.andreaserpauff.com.br/arquivos/artigos/ENSINAR%20TUDO%20A%20TODOS.pdf. Acesso em: 11/11/2015.
Imagem disponível em: http://www.inclusive.org.br/?p=19525. Acesso em: 11/11/2015.
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