CASO DE ENSINO NA ALFABETIZAÇÃO
Muitos profissionais criaram formas de acumular e compartilhar
conhecimentos: médicos podem recorrer a uma literatura de casos documentados
para analisar tentativas e descobertas de outros médicos no tratamento de
doenças específicas; advogados podem analisar o modo como as leis foram
interpretadas em casos específicos que já foram julgados e documentados. No
ensino, infelizmente, ainda não é possível encontrarmos um conjunto consistente
de casos de ensino construídos por professores que possam ser analisados entre
si e que possam ser acessados pelos docentes quando desejam ter idéias/exemplos
sobre como ensinar determinado tópico a seus alunos e/ou como enfrentar
situações escolares dilemáticas.
Neste capítulo, vamos discutir a necessidade de que professoras da
Educação Infantil e das séries iniciais do Ensino Fundamental passem a
registrar, por escrito, aquelas situações escolares vividas no seu cotidiano
com os alunos e comentadas com colegas de profissão nos corredores da escola,
nas salas dos professores, nas reuniões pedagógicas, etc. Acreditamos que, ao
registrar tais situações e pensar sobre elas, tanto de forma solitária, como
junto com demais colegas, as professoras aprendem, cada vez mais, o que é
ensinar. Vamos discutir também a necessidade de que professoras leiam e
analisem situações descritas por outras colegas. Discutindo situações escolares
devidamente registradas, na forma de histórias/narrativas, as professoras podem
perceber quais conhecimentos têm sido utilizados para ensinar determinado
conteúdo a seus alunos, para enfrentar determinados dilemas da profissão, para
lidar com alunos com diferentes formas de aprender, etc. Mais que isso, podem
discutir e analisar como tais conhecimentos que possuem sobre as melhores
formas de ensinar foram e estão sendo construídos. Podem pensar sobre si mesmas,
enquanto profissionais da educação. Têm sido chamadas de casos de ensino estas histórias de situações escolares (SHULMAN, 1992;
MERSETH, 1996; MIZUKAMI, 2000, 2002; dentre outros).
Já tivemos oportunidade de convidar professoras em formação – cursando o
magistério de nível médio – para ler e discutir casos de ensino (NONO, 2001).
Estas mesmas professoras, quando começaram a lecionar, foram novamente convidadas
a lidar com os casos (NONO; MIZUKAMI, 2005). De modo geral, elas se empolgaram
diante da tarefa. E também se empolgaram quando foram solicitadas a elaborar
casos de ensino a partir de suas próprias experiências escolares. Lendo,
analisando, discutindo e escrevendo casos de ensino, estas professoras puderam
pensar sobre diversas questões relacionadas à sua profissão: que conhecimentos
orientam minha prática profissional? Como foram e estão sendo construídos? Que
saberes possuo sobre os diversos conteúdos que preciso ensinar a meus alunos?
Como utilizo esses saberes quando planejo minhas aulas? Que conhecimentos
possuo sobre meus alunos? Como aprendi e como estou aprendendo a ser
professora? O que preciso ainda aprender sobre a profissão docente? Como lido
com as diversas situações escolares que preciso enfrentar no dia-a-dia? A
respeito das atividades com casos de ensino, estas professoras relataram,
dentre outras coisas, que, estudando os casos, conseguiram pensar sobre como
agiriam quando fossem professoras; conseguiram também vivenciar e refletir,
ainda cursando o magistério, sobre uma situação que iriam viver quando fossem
dar aulas. Mizukami (2000) destaca que os casos de ensino podem auxiliar
futuras professoras “[...] a tornar
familiar um terreno culturalmente estranho, a reconhecer os pontos de tensão, a
evitar erros sérios, a ampliar seu repertório de estratégias de ensino, a se
preparar para um mundo não familiar” (p.154). Já lecionando, as professoras
disseram que o estudo de casos de ensino permitiu que parassem para pensar um
pouco em sua trajetória profissional, em sua relação com outros colegas, na
necessidade de trocas de experiências entre professores; disseram que os casos
serviram de base de reflexão para sua atividade docente e, ainda, de estímulo a
novas descobertas.
Os casos de ensino mostram situações complexas vividas por professoras
durante sua atividade docente. Trazem exemplos de como é possível lidar com
determinadas situações e, mais que isso, explicitam dilemas e conflitos
enfrentados por docentes ao lidar com o ensino e com seus alunos. Mostram como
determinada aula foi conduzida, que problemas surgiram no decorrer das
atividades; trazem situações parecidas enfrentadas por diversas professoras, em
diferentes lugares, diferentes escolas, com diferentes alunos. Deixam clara a
complexidade do que é ser professora. Antes, porém, de continuarmos escrevendo
a respeito dos casos de ensino e de destacarmos a importância de que sejam
utilizados nas escolas, vejamos um caso escrito por uma professora que tenta
alfabetizar seus alunos.
Foi muito interessante a ‘hora
da história’ hoje. Como venho fazendo todos os dias, peguei os livros de que os
alunos mais gostam para que escolhessem a história que seria lida. Levantei O
Planeta Laranja e perguntei o que estava
escrito na capa. Me disseram em uníssono o nome do livro. Pedi que lessem outro
e responderam imediatamente: O lobo e os sete cabritinhos; depois foi o mesmo
com O segredo do rei. Mas eu tinha trazido também um novo, que ninguém conhecia
– O sapatinho dourado – que tinha na capa a ilustração de uma princesa
segurando um sapatinho reluzente. Pedi, da mesma forma, que me dissessem o que
estava escrito, e ouvi um coro não tão unânime assim: Cinderela! Algumas
crianças pareciam não estar tão certas... O Léo logo disse: ‘Tem muitas letras
para estar escrito Cinderela’. E logo a Maria Alice exclamou: ‘É Gata
Borralheira!’ Passou o dedinho sobre o título e se convenceu. Me deu um branco.
O que eu ia fazer? Confirmar que era? Dizer a verdade? Deixar pra lá? Por outro
lado, não são eles que vão construir esse conhecimento? Me segurei e, muito por
não saber o que fazer, não disse nada de imediato. Vi que algumas crianças se
detinham com atenção às letras e foram chegando à conclusão de que havia algo
errado, pois o que estava escrito começava com O e se fosse A Gata Borralheira
deveria começar com A.
Ficou claro para mim que cada
um poderia estar diante de um desafio diferente naquela situação. Alguns se
perturbaram com o fato de que apenas o contexto – no caso a ilustração da capa
– não bastava para informar o que estava escrito, outros que já conheciam as
letras se incomodaram por não poderem decifrar o que ali se dizia, outros ainda
tentavam uma leitura silábica, reconhecendo algumas letras e tentando
ajustá-las a A Gata Borralheira, desanimando-se diante da impossibilidade de
fazer isso. Em meio a essa discussão o Rafael me pediu para que lesse logo
Cinderela, referindo-se ao livro que eu havia trazido. Juro que fiquei
desconcertada. Para ele o que estávamos discutindo não fazia nenhum sentido.
Será que eu não poderia explicar para todos o que alguns já haviam
compreendido? Bem, aí eu contei o verdadeiro nome da história e li.
Devo confessar que não sei
muito bem como encaminhar situações desse tipo. Por um lado acho que estou
começando a entender qual a importância desse negócio de botar as crianças para
trabalharem juntas e para lerem quando ainda não sabem: dá uma boa confusão,
elas se envolvem, pensam, discutem, vejo as coisas que estou estudando sobre a
aprendizagem acontecerem ali na minha frente. Mas continuo sem saber como
ajudá-las a entender o funcionamento do sistema de escrita. Não consigo ficar
tranqüila terminando uma atividade que eu propus sem amarrar o que puderam
aprender, sem ter clareza do que aprenderam e, pior, sem saber sequer se
aprenderam. Preciso discutir o que mais posso propor e como posso intervir.[1]
Analisando brevemente este caso
de ensino, vemos que se trata de uma situação escolar vivida por uma professora
alfabetizadora que se vê diante de um dilema da profissão: como analisar as
intervenções das crianças e, a partir delas, continuar a aula de modo que novos
conhecimentos sejam construídos? Muitas questões incomodam a professora: O que eu ia fazer? Confirmar que era? Dizer
a verdade? Deixar pra lá? Por outro lado, não são eles que vão construir esse
conhecimento? Será que eu não poderia explicar para todos o que alguns já
haviam compreendido? Ao relatar, por escrito, a situação vivida, ela toma
consciência de suas dificuldades em lidar com os acontecimentos: Devo confessar que não sei muito bem como
encaminhar situações desse tipo. A partir das dúvidas descritas pela
professora Ana Rosa – autora do caso – outras professoras podem discutir que
atitudes tomariam diante da situação, quais conhecimentos são necessários para
que a professora resolva seus dilemas, quais conhecimentos as crianças estão
utilizando e precisam aprender para poder ler o nome do livro, que motivos
levaram a professora a não saber o que fazer diante do ocorrido. As atitudes da
professora do caso em questão também mostram conhecimentos que ela possui sobre
como alfabetizar crianças. Analisando e discutindo dilemas vividos pela
professora Ana Rosa e conhecimentos utilizados por ela, professoras podem
pensar sobre seus próprios dilemas e conhecimentos. Para orientar a discussão
de um caso de ensino como esse, que poderia ocorrer em reuniões pedagógicas nas
escolas, algumas questões poderiam ser colocadas e respondidas, tanto
individual, como coletivamente:
Em que conhecimentos você
acredita que as crianças se basearam para ‘ler’ o nome do novo livro trazido
pela professora Ana Rosa?
Dê sua opinião: por que a
professora ficou sem saber o que fazer diante da situação criada em torno da
leitura do nome do livro? Que conhecimentos ela possui sobre alfabetização?
Sem saber como lidar com o
ocorrido, a professora preferiu contar o nome verdadeiro da história e ler o
livro para as crianças. Pense um pouco e responda: a) diante dessa atitude da
professora, o que você acha que se passou nos pensamentos das crianças que
haviam dito que o nome do livro era Cinderela e nos pensamentos da Maria Alice,
do Léo e do Rafael? b) se você estivesse no lugar da professora Ana Rosa, como
lidaria com a diversidade de respostas das crianças? O que você faria? Agiria
como ela? Ou não? Quais seriam as suas atitudes?
Como você utiliza livros de
história em suas aulas? Como você os seleciona? Conte uma aula (ou projeto) em
que você utilizou livro(s) de história. Procure dizer quais eram os objetivos
da aula, que livro escolheu e o porquê, como organizou a classe, quais atividades
desenvolveu, como avaliou as atividades, o quê as crianças aprenderam...
Para que seus saberes sejam úteis e acessíveis aos outros colegas de
profissão, os professores precisam fazer o esforço de formular, objetivar e
traduzir suas práticas e vivências profissionais (TARDIF, 2002). Foi exatamente
isso que fez a professora Ana Rosa. Ao descrever e tornar pública uma situação
de ensino que vivenciou, ela não apenas reflete sobre os acontecimentos
vividos, mas também permite que outras colegas aprendam a partir de sua
experiência. Na medida em que mais e mais professoras tomarem a mesma atitude,
teremos um grande conjunto de experiências docentes documentando o que ocorre
diariamente em nossas escolas, onde professoras se esforçam para ensinar
milhares de crianças. Ao documentar seus conhecimentos, as docentes estarão
dando grande auxílio ao processo de valorização da profissão docente, na medida
em que seus conhecimentos passarão a ser reconhecidos publicamente. Ao mostrar
ao público os conflitos da docência, explicitarão sua complexidade e a
necessidade, cada vez maior, de que tenham condições permanentes de participar
de programas de formação continuada.
Perrenoud (2000) trata das competências que uma
professora necessita para ensinar e, dentre elas, destaca a competência para
saber explicitar as próprias práticas. De acordo com este pesquisador, as
professoras precisam se habituar a registrar e a discutir com outros colegas
fragmentos de suas práticas, sem temer serem julgadas e condenadas por suas
atitudes diante das situações enfrentadas. As professoras precisam saber
demonstrar a um interlocutor, através de registros de eventos escolares, que as
situações vividas em sala de aula são orientadas por conhecimentos
profissionais que possuem e constroem constantemente. Tais conhecimentos
permitem que as professoras analisem as situações, delimitem os problemas,
estabeleçam diagnósticos, construam estratégias e superem obstáculos. De acordo
com Perrenoud (2000), as professoras tomam consciência do que fazem nas aulas
ao registrar e analisar suas práticas, colocando-as em discussão.
Devemos sempre considerar que não é tarefa fácil
descrever as situações que vivenciamos em nosso dia-a-dia. Existem diversos
aspectos envolvidos nos acontecimentos escolares e nem sempre é simples
analisar e descrever todos eles. Alguns pesquisadores têm feito recomendações
sobre as maneiras mais adequadas de uma professora elaborar um caso de ensino a
partir de uma situação escolar vivida por ela em sua instituição escolar.
Hammerness, Darling-Hammond e Shulman (2002) destacam que um caso precisa
trazer informações sobre os estudantes; sobre o contexto curricular; sobre as
ações, palavras e sentimentos da professora durante o evento descrito; sobre as
reações dos alunos. Wassermann (1993) descreve estratégias que podem orientar a
elaboração de casos. Aponta um conjunto de questões que podem auxiliar a
professora na transformação de um acontecimento de sala de aula em um caso de
ensino. São questões que não devem simplesmente ser respondidas no caso, mas
que devem orientar os pensamentos da docente ao descrever uma situação
conflitiva que vivenciou com seus alunos:
Escolher um incidente crítico. O dia-a-dia de uma sala de
aula é marcado por diversos eventos que podem ser considerados incidentes
críticos que, de alguma forma, exigem do professor atitudes imediatas e
efetivas. Alguns alunos não fizeram sua tarefa. Não há livros suficientes para
todos os alunos. Algumas crianças se recusam a realizar as atividades
propostas. As atividades planejadas para ensinar determinado conteúdo não estão
sendo bem-sucedidas. Dentre tantos eventos, qual deles escolher para elaborar
um caso de ensino que possa ser discutido com outros colegas? De início, o
professor precisa desejar escrever sobre determinado evento, precisa ter
interesse em se aprofundar na situação. Em seguida, pode observar alguns
critérios: a situação possui um ‘poder emocional’ sobre você? A situação
apresenta um dilema sobre o qual você está confuso em como resolvê-lo? A
situação requer a tomada de decisões difíceis? A situação levou-o a tomar
decisões e a adotar atitudes sobre as quais você está insatisfeito, sem ter
certeza de que agiu corretamente?
Descrever o contexto. Não é essencial que o
professor comece o caso de ensino descrevendo os eventos que geraram o
incidente. Esta é, entretanto, uma das maneiras de fornecer um pano de fundo
dos acontecimentos, inserindo a situação em um contexto mais amplo. Ao fazer
isso, o professor pode refletir sobre aspectos que geraram a situação crítica.
Identificar os personagens do incidente. Ao escrever um caso de ensino,
o professor deve identificar quais são os personagens principais e secundários
da trama. Quais os papéis assumidos por cada personagem envolvido na situação?
Quais as relações entre eles e com o professor? É importante a apresentação dos
sentimentos, objetivos, expectativas de cada pessoa envolvida no caso de
ensino, incluindo o próprio professor que narra o incidente.
Revisar a situação e a forma como agiu diante dela.
O que ocorreu?
Quais eram as possíveis decisões a serem tomadas pelo professor diante dos
acontecimentos? Quais os riscos envolvidos em cada uma das decisões? Como o
professor agiu? Que sentimentos o levaram a tomar determinada decisão? Que
pressupostos e valores estiveram por trás da decisão? Se o professor não
conseguiu agir diante do incidente ocorrido em sala de aula, como pode
acontecer em alguns casos, por que ele não agiu?
Examinar os efeitos de suas atitudes. Cada atitude (ou falta de
atitude) de um professor resulta em uma série de reações. Quais foram, no
evento descrito, algumas das reações às atitudes tomadas pelo docente? Qual foi
o impacto da decisão sobre os alunos e sobre o clima da sala de aula? Quais
foram as conseqüências da decisão tomada sobre o próprio professor?
Revisitar o incidente. Ao revisitar o incidente, o
professor precisa procurar visualizá-lo de maneiras diferentes. Se estivesse
novamente diante do mesmo incidente, como agiria de forma diferente em relação
à situação, aos personagens, a si mesmo? Ao analisar a situação, quais suas
percepções sobre si mesmo como docente?
Os casos de ensino também podem apresentar situações vividas pelas
professoras em que, mesmo tendo enfrentado alguns dilemas, elas tenham
encontrado soluções para seus problemas. São situações em que, no final, tudo
se resolve. Nestes casos, podemos discutir a forma como os problemas foram
solucionados, pensando em outras possibilidades de resolução. Trazemos, abaixo,
um caso de ensino, envolvendo também uma situação de alfabetização, em que a
tensão inicial descrita foi aliviada ao final.
Quando eu era professora de
uma classe de pré, vivia fascinada por ser testemunha e parceira do processo de
alfabetização das crianças.
Uma das características mais
marcantes desse momento é a consciência e, por conseguinte, a preocupação que
os alunos começam a ter em escrever convencionalmente ou, nas palavras das
próprias crianças, escrever certo. Na educação infantil, se você pedir às
crianças que escrevam alguma coisa, na grande maioria das vezes elas não têm o
menor pudor: pegam o papel, o lápis ou caneta e se põem a escrever. Mas no pré,
como alguns já começam a escrever convencionalmente, outros ficam meio
intimidados e não querem se expor.
Este é um dos maiores desafios
do professor. Nossa expectativa é que eles escrevam e, a partir dessa produção,
possamos colocar questões e problematizar para que avancem nas suas idéias
sobre a língua escrita. Mas, e quando pedimos que escrevam e eles dizem que não
sabem escrever? Aí é uma encrenca! Eu vivi essa situação. Quando os alunos
começavam a mostrar resistência para escrever, eu ficava perturbada. Afinal,
era verdade que eles não sabiam. A única coisa que sobrava, e que eu achava
correto, era dizer: “Escreva do seu jeito”.
No primeiro momento, isso até
funcionou. Eles se despreocupavam, relaxavam e acabavam escrevendo. O problema
é que algumas crianças começaram a achar que escrever do jeito delas era
sinônimo de escrever de qualquer jeito. Resultado: eu tinha que engolir qualquer
coisa porque, afinal, era do jeito delas. Ficou claro também que estavam
realizando produções inferiores ao que seriam capazes de fazer.
Percebendo isso e discutindo
com outros professores que também estavam sentindo esse problema, acabamos
encontrando uma solução. Passamos então a pedir que as crianças escrevessem “da
melhor maneira possível” ou “do melhor jeito que conseguissem”. Passamos também
a chamar a atenção das crianças para que utilizassem conhecimentos sobre os
nomes deles e dos colegas, que olhassem as listas (de histórias conhecidas, de
materiais etc) que havia na classe, que procurassem no alfabeto letras que
pudessem servir etc.
Creio que foi um salto de
qualidade para a nossa atuação como professores. Desse modo, as crianças não se
sentiam obrigadas a escrever convencionalmente, com medo de estar fazendo
errado e, ao mesmo tempo, não se contentavam com pouco.[2]
Neste caso de ensino, escrito pela professora Cláudia, vemos a descrição
de uma situação dilemática enfrentada por ela ao tentar orientar seus alunos em
seus processos de alfabetização. Vemos, mais que isso, a descrição da forma
encontrada para resolver o dilema enfrentado: como orientar adequadamente as crianças em fase de alfabetização a
escrever espontaneamente para que possa, a partir dessa produção, colocar
questões e problematizar para que avancem nas suas idéias sobre a língua
escrita? Analisando a narrativa, outras professoras podem acessar,
examinar, discutir, utilizar e repensar os conhecimentos profissionais
explicitados pela professora Cláudia. Podem, ainda, refletir a respeito das
seguintes temáticas: o que sabem seus
próprios alunos sobre a leitura e a escrita? O que têm ensinado para seus
alunos para que eles avancem em seus processos de alfabetização e de utilização
da leitura e da escrita? Como têm ensinado, ou seja, que atividades/situações
têm proposto a seus alunos para que eles aprendam a ler e a escrever
adequadamente? De que maneira – e a partir de quais instrumentos – avaliam os
conhecimentos de seus alunos em relação à leitura e à escrita? Que
conhecimentos uma professora precisa ter para ser, como escreve a professora
Cláudia, ‘testemunha e parceira do processo de alfabetização das crianças’? Que
diferenças existem na forma como aprenderam a ler e a escrever e nas formas
como, hoje, ensinam seus alunos a lidar com a leitura e a escrita?
Discutindo, em conjunto, temáticas como essas, professoras podem pensar sobre
seus conhecimentos em torno de aspectos referentes aos processos de
alfabetização e podem construir novos conhecimentos sobre o tema. A experiência
vivida pela professora Cláudia passa, então, a servir de base para que seus
colegas de profissão vivenciem novas aprendizagens profissionais. O caso
elaborado por ela possibilita discussões teóricas e, ao mesmo tempo, reflexões
em torno de uma situação escolar específica e contextualizada. Permite
reflexões individuais e coletivas.
Acreditamos, hoje, que a aprendizagem profissional da docência não se
encerra nos cursos de formação inicial. Ao contrário, sabemos que as
professoras continuam aprendendo como exercer sua profissão ao longo da
carreira. Atualmente se considera, inclusive, que, dentre as competências de
que as professoras necessitam para ensinar (PERRENOUD, 2000) está a de saber
administrar sua própria formação profissional continuada. Diante de um cenário
em constante mudança, cabe a essas profissionais refletir sobre suas práticas e
sobre as práticas de seus colegas, considerando os contextos escolares em que ocorrem,
buscando sempre uma revisão dos conhecimentos que possuem sobre aspectos
referentes aos processos de ensinar e aprender. Aliás, mais que um dever das
professoras, a formação contínua é vista, hoje, como um direito delas, devendo
fazer parte de políticas públicas educacionais e não apenas surgindo de
iniciativas individuais de docentes interessadas em aperfeiçoamento próprio. A
escola, hoje, é tida não apenas como um local onde as crianças aprendem, mas,
também, um local de formação das professoras. É destacada a necessidade de que,
na escola, professoras trabalhem coletivamente, evitando o isolamento que tem
caracterizado sua profissão, compartilhando e construindo conhecimentos
específicos da docência. É necessário que nela sejam criados espaços coletivos
para que as docentes tenham oportunidades para conversar com outros colegas a
respeito do ensino que estão desenvolvendo, para analisar o trabalho de seus
alunos, para examinar problemas e considerar alternativas de atuação,
repensando aquelas certezas que vão sendo construídas ao longo dos anos de
docência. Para orientar essas conversas, sugerimos que os casos de ensino sejam
utilizados. Eles permitem que professoras expressem seus saberes profissionais,
colocando-os em discussão, e analisem saberes de outros colegas de profissão.
Sabemos, hoje, que as professoras se utilizam de diversos tipos de
conhecimentos para organizar seu ensino: conhecimentos a respeito dos conteúdos
escolares que devem ensinar; a respeito das melhores formas de transformar em
ensino seus conhecimentos a respeito de cada conteúdo curricular; a respeito de
como organizar adequadamente a sala de aula e os alunos para que as
aprendizagens ocorram; a respeito dos currículos e programas que devem orientar
seu planejamento das aulas; dos materiais didáticos disponíveis e mais
adequados para o ensino de cada conteúdo escolar; dos alunos que possui e de
suas características sociais, cognitivas etc; do contexto escolar que envolve
seu trabalho; dos objetivos da educação e de seu ensino; conhecimentos a
respeito de seu processo pessoal de aprendizagem da docência. Durante a
atividade de ensinar, as professoras recorrem a seus saberes pessoais
(construídos na família, no ambiente de vida); a saberes provenientes da
formação escolar anterior (construídos durante a trajetória como alunas nas
escolas primárias e secundárias); a saberes provenientes da formação
profissional para o magistério (construídos nos estabelecimentos de formação de
professores, nos estágios, nos cursos de aperfeiçoamento); a saberes
provenientes de livros didáticos usados para ensinar; a saberes provenientes de
sua própria experiência na profissão, na sala de aula e na escola em que
trabalha (TARDIF, 2002). Todos esses saberes e conhecimentos da profissão
docente precisam ser explicitados pelas professoras. Ao construir casos de
ensino a partir de suas práticas, elas estarão permitindo que outras pessoas
visualizem o que sabem sobre o ensino e sobre a profissão docente.
As formas de utilização dos casos de ensino podem variar. Existem livros
e revistas em que podem ser encontrados casos elaborados por professoras que
sirvam de base para reflexões e que se relacionem com situações similares
vividas em diferentes escolas e classes de alunos. Estes casos podem ser lidos
individualmente, numa leitura em que haja uma busca de identificação de
temáticas a serem posteriormente discutidas e de estabelecimento de relações
com experiências pessoais com situações de ensino. Discussões coletivas podem
garantir a socialização das reflexões individuais. Um conjunto de casos de
ensino também pode ser elaborado nas diferentes escolas a partir das diversas
experiências vividas cotidianamente pelas professoras. Todos os dias, em
diferentes instituições escolares, diante da complexidade das aulas,
caracterizadas pela ocorrência simultânea e imprevisível de múltiplos eventos,
professoras tomam decisões que expressam seus conhecimentos sobre a docência e
que podem originar interessantes narrativas. Estas narrativas podem ser
discutidas e reelaboradas até que expressem com detalhes situações vivenciadas.
Concepções, conhecimentos, certezas que as professoras possuem poderão,
com a ajuda da análise e elaboração de casos de ensino, ser explicitadas e
discutidas, tendo sua validade constantemente repensada. Teorias pessoais sobre
o ensino poderão ser ressignificadas, a partir da análise crítica de situações
escolares. O estudo de casos também possibilita o estabelecimento de relações
entre a teoria educacional e as particularidades das situações de ensino
vividas no dia-a-dia escolar. Os casos auxiliam as professoras a transitar
entre uma situação de sala de aula vivida em um contexto de trabalho diferente
do seu, situações vividas em seu próprio contexto institucional e princípios
gerais do ensino. Shulman (1992) considera que o uso adequado de casos pode
ajudar a professora a relacionar teoria e prática; encontrar saídas e resolver
problemas em situações dilemáticas; interpretar situações a partir de múltiplas
perspectivas; tomar decisões; reconhecer riscos e vantagens presentes em cada forma
de agir; identificar e testar princípios teóricos em situações reais de sala de
aula. O estudo de situações práticas é defendido por Imbernón (2001) que
argumenta que a prática educativa é pessoal e contextual, constituída não por
problemas genéricos mas, sim, por situações problemáticas que ocorrem em um
determinado contexto prático. Os casos permitem o estudo de várias temáticas
relacionadas a diversas áreas de conhecimento e a revisão de concepções sobre
ensino, aprendizagem, avaliação, disciplina, etc. A grande contribuição dos
casos de ensino para as professoras está no fato de que possibilitam que essas
profissionais explicitem e publiquem o conjunto de conhecimentos utilizados,
construídos e mobilizados por elas no exercício de sua profissão.
[1][1] Este caso de ensino foi escrito em 1987
pela professora Ana Rosa Abreu e está publicado em:
WEISZ, T.
O diálogo entre o ensino e a aprendizagem. São Paulo, Ática, 2002.
[2] Este caso de ensino foi escrito pela
professora Cláudia Aratangy e está publicado em:
WEISZ, T.
O diálogo entre o ensino e a aprendizagem. São Paulo, Ática, 2002
Disponível em: https://www.google.com.br/#q=caso+de+ensino+sobre+alfabetiza%C3%A7%C3%A3o+na+escola. Acesso em: 30/11/2015.
Imagem disponível em: http://gestaoescolar.abril.com.br/aprendizagem/ensino-cara-campo-448833.shtml. Acesso em: 30/11/2015.
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