CARTILHAS E ALFABETIZAÇÃO
Necessidade apontada desde o final do século XIX no Brasil, o
processo de nacionalização do livro didático – produzido por brasileiros e adequado à realidade brasileira – acompanha pari passu o anseio de organização
republicana da instrução pública; e, simultaneamente, faz-se
acompanhar do surgimento e da expansão do mercado editorial brasileiro,
que na escola encontra espaço privilegiado de circulação e público
consumidor de seus produtos.
No entrecruzamento desses anseios e iniciativas, o ensino inicial da
leitura1
é tomado como problema estratégico, tornando-se um importante
índice para medir a eficácia da escola em relação ao cumprimento da
promessa com que acena às novas gerações e que a caracteriza e justifica:
o acesso ao mundo público da cultura letrada. Inicia-se, assim, um
movimento de escolarização das práticas culturais de leitura e escrita e sua
identificação com a questão dos métodos de ensino. Lugar de destaque,
passam, então, a ocupar as tematizações, normatizações e concretizações
sobre esse ensino e sobre um tipo particular de livro didático, a cartilha, na
qual se encontram o método a ser seguido e a matéria a ser ensinada, de
acordo com certo programa oficial estabelecido previamente.
Embora já na segunda metade do século XIX encontrem-se cartilhas
produzidas por brasileiros, o impulso nacionalizante nessa área se faz sentir,
especialmente em alguns estados, a partir da década de 1890, solidificandose
nas primeiras décadas do século XX, quando se observa o engendramento
de fenômenos correlatos: apoio de editores e especialização de editoras
na publicação desse tipo de livro didático; surgimento de um tipo específico
de escritor didático profissional – o professor; e processo de institucionalização
da cartilha, mediante sua aprovação, adoção, compra e distribuição às escolas
públicas, por parte de órgãos dos governos estaduais.
Acompanhando o movimento histórico das tematizações, normatizações
e concretizações sobre a questão dos métodos, as primeiras
cartilhas brasileiras, produzidas sobretudo por professores fluminenses e
paulistas através de sua experiência didática, baseavam-se nos métodos
de marcha sintética (processos de soletração e silabação). Dever-se-ia,
assim, iniciar o ensino da leitura com a apresentação das letras e seus
nomes, de acordo com certa ordem crescente de dificuldade. Posteriormente
reunidas as letras em sílabas e conhecendo-se as famílias silábicas,
ensinava-se a ler palavras formadas com essas sílabas e letras e, por fim, ensinavam-se frases isoladas ou agrupadas. Quanto à escrita, esta
restringia-se à caligrafia e seu ensino, à cópia, ditados e formação de frases,
enfatizando-se a ortografia e o desenho correto das letras. As cartilhas produzidas sobretudo no início do século XX, por sua vez,
passaram a se basear programaticamente no método de marcha analítica
(processos de palavração e sentenciação), a partir das contribuições da
pedagogia norte-americana, divulgadas inicialmente no estado de São Paulo
pelas reformas da instrução pública na década de 1890 e posteriormente
disseminadas para outros estados brasileiros, por meio de “missões de
professores” paulistas.2
Embora muitas tenham sido as disputas sobre as
diferentes formas de processuação do método, um ponto em comum era a
necessidade de se adaptar esse ensino às necessidades biopsicológicas
da criança, cuja forma de apreensão do mundo era tida como sincrética.
Uma nova concepção de criança – de caráter psicológico – passa a
embasar a discussão sobre o método de ensino da leitura (e da escrita).
Empreendida por educadores, essa discussão prioriza as questões
didáticas, ou seja, o como ensinar, com base na definição das habilidades
visuais, auditivas e motoras do aprendiz. A partir de então, observa-se um
movimento de institucionalização do método analítico, que se consolida
com a publicação das Instruções práticas para o ensino da leitura pelo
methodo analytico – modelos de lições, expedidas pela Directoria Geral da
Instrucção Publica do Estado de São Paulo, em 1915. Nesse documento
passa-se a priorizar a historieta (conjunto de frases relacionadas entre si
por meio de nexos lógicos), como núcleo de sentido e ponto de partida para
o ensino da leitura, enfatizando-se as funções instrumentais desse ensino.
A partir dos anos de 1930, aproximadamente, as cartilhas passam a
se basear em métodos mistos ou ecléticos (analítico-sintético e vice-versa),
especialmente em decorrência da disseminação e da repercussão dos
testes ABC, de Lourenço Filho, cuja finalidade era medir o nível de maturidade
necessário ao aprendizado da leitura e da escrita, visando à maior rapidez e
eficiência na alfabetização. Verifica-se, então, um processo de secundarização
da importância do método, uma vez que o como ensinar encontra-se
subordinado à maturidade da criança e as questões de ordem didática, às
de ordem psicológica. Observa-se, no entanto, embora com outras bases
teóricas, a permanência da função instrumental de ensino e aprendizagem
da leitura e da escrita, entendidas como habilidades visuais, auditivas e
motoras; e começam a se produzir os manuais do professor acompanhando
as cartilhas, assim como se dissemina a idéia da necessidade de um
“período preparatório”.
A partir dos anos de 1980, passa-se a questionar programaticamente
a necessidade dos métodos e da cartilha de alfabetização, em decorrência
da intensa divulgação, entre nós, dos pensamentos construtivista e
interacionista sobre alfabetização.3
No entanto, esses questionamentos parecem ter sido satisfatoriamente
assimilados, resultando: no paradoxo da produção de cartilhas
“construtivistas” ou “socioconstrutivistas” ou “sociointeracionistas”; na
convivência destas com cartilhas tradicionais,4
nas indicações oficiais e
nas estantes dos professores, muitos dos quais alegam tê-las apenas
para consulta quando da preparação de suas aulas; e no ensino e aprendizagem
do modelo de leitura e escrita veiculado pelas cartilhas, mesmo
quando os professores dizem seguir uma “linha construtivista” ou “interacionista”
e seus alunos não utilizam diretamente esse instrumento em sala
de aula, como ocorreu nos casos transcritos a seguir.
Ao longo desses aproximados 120 anos, a cartilha sofreu alterações
relativas ao método e teve aprimorados e atualizados vários de seus aspectos,
especialmente o suporte material e os temas abordados nas lições.
Entretanto, permaneceu até os dias atuais, assim como conservou-se intocada
sua condição de imprescindível instrumento de concretização de
determinado método, ou seja, da seqüência necessária de passos predeterminados
para o ensino e a aprendizagem iniciais de leitura e escrita, e,
em decorrência, da configuração silenciosa de determinado conteúdo de
ensino, assim como de certas também silenciosas, mas efetivamente
operantes, concepções de alfabetização, leitura, escrita, texto e linguagem/
língua. Essas concepções operantes podem ser assim sintetizadas:
• alfabetização: processo de ensinar e aprender o conteúdo da cartilha,
de acordo com o método proposto, o que permite considerar alfabetizado
o aluno que tiver terminado a cartilha com êxito, ou seja, que tiver
aprendido a ler e escrever, podendo, assim, começar a ler e escrever;
• leitura e escrita: instrumentos de aquisição de conteúdos escolares,
cuja finalidade e cuja utilidade se encerram nos limites da própria situação
escolar, ou seja, de ensino e aprendizagem.
• texto: conjunto de frases, por vezes com nexos sintáticos entre si,
constituído de palavras escolhidas de acordo com o nível de dificuldade
adequado ao momento de aprendizagem.
• linguagem/língua: expressão do pensamento e instrumento de
comunicação, cujo funcionamento assume características especificamente
voltadas para a situação de ensino e aprendizagem escolares.
Tais concepções remetem à permanência de um projeto (republicano)
de educação que vem sendo objeto de constantes ajustamentos e
atualizações, cada vez que se constata uma crise, ou seja, cada vez que a
testagem – especialmente por meio dos índices de repetência ou evasão –
de sua eficácia revela que as crianças estão tendo pouco ou nenhum sucesso
na alfabetização. E é no âmbito desse projeto, fundamentado em uma
concepção seletiva e normativa de cultura, que se engendra uma cultura
escolar.
Como se observa nos exemplos de lições de cartilhas e cadernos de
alunos apresentados no tópico anterior, na história da alfabetização em
nosso país podem-se identificar certos conteúdos cognitivos e simbólicos
– relacionados com aquelas concepções de alfabetização, leitura, escrita,
texto e linguagem/língua –, que, selecionados, organizados, normalizados,
rotinizados e didatizados, continuam constituindo objeto de transmissão
deliberada, sobretudo mediante a utilização direta ou indireta da cartilha de
alfabetização até os dias atuais, a despeito das normatizações oficiais
contrárias6
e dos avanços da lingüística contemporânea, especialmente
na vertente da análise do discurso e da teoria da enunciação em que se
fundamentam pensamentos contemporâneos sobre alfabetização, como
os de Geraldi (1984, 1991, 1996) e Smolka (1989).
Dessa forma, no âmbito da realização de sua função educativa,
mediante processo de transmissão cultural intencional, explícita e organizada
para as novas gerações e com base em uma razão pedagógica
essencialmente normativa e prescritiva, cuja tentação é o anseio de
universalização, na escola brasileira vem-se ensinando e aprendendo uma
imagem idealizada de linguagem/língua – e, em decorrência, de leitura,
escrita e texto – que constitui o objeto de uma aprovação social e sua versão
autorizada, sua face legítima.
Dada a legitimidade e o valor intrínseco que a autoridade pedagógica
do professor (ainda) confere a esses conteúdos e o fato de ser a escola o
lugar por excelência para se aprender a ler e escrever, mesmo o valor
instrumental – relativo ao acesso à instrução e ao mundo público da cultura
letrada – anunciado ou desejado para essa aprendizagem é substituído por
um valor em si decorrente de uma finalidade restrita à própria aprendizagem,
de modo tal que, à pergunta “Para que aprender a ler e escrever?”, uma das
respostas possíveis – ou talvez a única – seja: “Para aprender a ler e escrever”.
No Brasil, desde pelo menos a última década do século XIX, a escola
vem prometendo, a cada nova geração, o acesso à instrução e ao mundo
público da cultura letrada. No entanto, essa promessa assemelha-se à do
Mefistófeles travestido: não é o conhecimento o que o falso Fausto lhe oferece,
nem é Fausto, o sábio, quem promete instruir o incauto estudante. Assim
também, na escola brasileira, o que se tem oferecido aos estudantes é o
acesso a certa cultura escolar, mediado especialmente pela cartilha de
alfabetização, esse primeiro e emblemático instrumento, substitutivo do
trabalho de professores e alunos, que se apresenta como portal do mundo
prometido e que forma nossas crianças, no sentido da constituição de um
modo de pensar, sentir, querer e agir relacionado com a imagem idealizada
de linguagem/língua e com modelos equivocados de leitura, escrita e texto.
Será a cartilha de alfabetização um mal necessário, de fato? Que
outras concepções, que outras práticas, que outros conteúdos, que outras
finalidades da alfabetização, que outras formas de acesso ao mundo da
cultura seriam possíveis, no sentido de romper com esse pacto secular?
Referência: MORTATTI, Maria do Rosário Longo. Cartilha de alfabetização e cultura escolar: um pacto secular. Cadernos CEDES, ano XX, n. 52, novembro, 2000. Disponível em: http://www.scielo.br/pdf/ccedes/v20n52/a04v2052. Acesso em: 08/04/2015.
Imagens disponíveis em: http://www.novosaber.com.br/livros/pedagogicas/alfabetizacao-em-cartilha-caminhos-da-aprend-ci; http://www.lerlivrosonline.net/cartilha-caminho-suave-preco-e-comprar.html#.VSW49PnF9zs; http://www.cotacota.com.br/alegria-de-saber-cartilha-alfabetizacao-passos-lucina-maria-marinho_1154_372790_oferta.html; http://clubedosentasdecatanduva.blogspot.com.br/2010/11/nossa-alfabetizacao-nossas-cartilhas.html. Acesso em: 08/04/2015.
BOA NOITE,
ResponderExcluirMEU NOME É GLEISON E GOSTARIA DE SABER COMO CONSEGUIR UM LIVRO ALEGRIA DE SABER ALFABETIZAÇÃO PARA COMPRAR.
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Tbm gostaria de comprar um exemplar
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