ENTREVISTAS COM PAULO FREIRE
Paulo Freire é o Patrono da Educação Brasileira. O título foi oficializado pela Lei. Nº 12.612, sancionada pela presidente Dilma em abril de 2012.
Oportunidade para reeditar, agora em versão digital, publicação especial do SINPRO-SP do início dos anos 2000 que trazia trechos da entrevista que o educador havia concedido ao Jornal dos Professores em 1991, pouco depois de completar 70 anos.
Oportunidade para reeditar, agora em versão digital, publicação especial do SINPRO-SP do início dos anos 2000 que trazia trechos da entrevista que o educador havia concedido ao Jornal dos Professores em 1991, pouco depois de completar 70 anos.
Material histórico, que merece ser compartilhado ainda mais.
O nome Paulo Freire dispensa qualquer apresentação, principalmente para os professores que estão comprometidos com a dimensão social de seu ofício e querem transformá-lo num instrumento para a construção de um Brasil justo e democrático. É por esse motivo que o SINPRO-SP homenageia os educadores com a reedição de trechos da entrevista que Freire concedeu ao jornal do Sindicato em dezembro de 1991, relatando aspectos de sua vida que são pouco conhecidos e que permitem uma compreensão ainda maior da coerência de sua ação.
A relação de Paulo Freire com o SINPRO-SP sempre foi intensa. Sua presença nos eventos promovidos pelo Sindicato e voltados para nossa categoria foi uma constante e seu apoio aos movimentos políticos e reivindicatórios liderados pela entidade tornou-se parte integrante de sua vida sempre atribulada e repleta de compromissos. Mas de Paulo Freire sempre se podia esperar que sua visão progressista dos movimentos sociais em torno da defesa da dignidade dos educadores abrisse espaço de atuação e emprenho.
As obras de Paulo Freire foram traduzidas para 18 idiomas. Foi ele o criador de um método de alfabetização de adultos consagrado em países do terceiro mundo e até mesmo nos Estados Unidos. Recebeu 15 títulos de doutor honoris causadas principais universidades de diversas nações. Quando concedeu a entrevista ao Jornal dos Professores, pouco depois de completar 70 anos, mostrava pela vida e pela defesa de suas ideias uma energia juvenil e aguerrida, certamente a mesma que o levou ao exílio depois da perseguição de que foi vítima durante os governos militares. Esse fato está entre aqueles que maior prejuízo provocaram à sociedade brasileira durante a ditadura, porque privou nosso povo de tê-lo consigo no enfrentamento dos desafios cotidianos que ainda nos oprimem.
Suas palavras sempre foram, por tudo isso, uma lição de vida. E sua leitura hoje provoca sensação idêntica, embora Paulo Regis Neves Freire, nascido em Pernambuco, em 1921, já nos tenha deixado. Quando morreu, em 1997, alimentava a mesma disposição de luta. E não é esse o traço que distingue a coerência? Suas ideias dão prosseguimento à sua trajetória.
O Sindicato dos Professores de São Paulo (SINPRO-SP) orgulha-se de que Paulo Freire tenha sido o mais emérito de seus sócios, tanto quanto se orgulha de tê-lo na memória das nossas lutas, na sua presença orientadora e estimuladora dos bons combates.
Entrevista com Paulo Freire
Jornal dos Professores – Paulo Freire, 70 anos, professor falando com os professores. Nós poderíamos começar assim: quando surgiu em você o desejo de ser professor? Como foi?Paulo Freire – Fui um menino cheio de “anúncios docentes”, o que não significa que eu tenha nascido professor. Agora quando eu me revejo, me retorno – coisa que gosto de fazer – me lembro que era um menino curioso. Um professor que não exerce a curiosidade está equivocado. Eu me perguntava muito, perguntava aos outros, era metódico no estudo. Sofria quando não aprendia e receava que isso prejudicasse o meu próprio processo de estudo. Tinha certas preocupações que a gente pode chamar de pedagógicas. Na adolescência, sonhava tanto em ser professor que às vezes, para mim, era difícil perceber que estava no nível imaginário e não do real: eu me via dando aula.
O que o levou ser professor?Eu dizia que havia duas razões visíveis para eu ter me entregue ao Magistério. Uma era a necessidade de ajudar. A minha família sofreu o impacto da crise de 1929, tivemos que nos mudar do Recife para Jaboatão. Foi uma espécie de decisão mágica da família, para ver se fora seria melhor. Mas não deu certo.
A falta de dinheiro e o endividamento continuaram lá. Quando eu tinha meus 18 ou 19 anos, estudante de ginásio, eu precisava ajudar em casa. Meus dois irmãos estavam trabalhando normalmente, muito sacrificados; minha irmã estava no último ano da Escola Normal e a única maneira de eu ajudar era ensinando.
A segunda, na verdade, foi uma questão de gosto intelectual. Eu era muito menino quando descobri certa paixão pelos estudos de Gramática e deis saltos por mim mesmo.
Eu li todos os bons gramáticos brasileiros e portugueses que consegui comprar em sebos, tinha uma paixão enorme e foi exatamente me servindo dos conhecimentos que fui adquirindo que me tornei, antes mesmo de estar dando aula, competente para dar aula. Dando aula a jovens de classe média, tão apertados quanto eu em Jaboatão, fui me tornando professor. Quando digo que ninguém nasce professor, eu tenho a experiência viva disso.
Como era a vida em Jaboatão?Muito dura, muito sofrida. Meu pai morreu quando eu tinha 13 anos, o que agravou ainda mais a crise. Eu me lembro de certos momentos da vida de minha mãe e quando em me lembro deles tenho uma sensação de mágoa. Era, por exemplo, acompanhando-a que eu pude ver com que rosto de vergonha, de intimidação, ela ficava quando o sujeito da venda – minha mãe ainda não havia posto o corpo inteiro na porta – gritava por trás do balcão que não venderia a ela porque a dívida já era grande e que não acrescentaria mais.
Ela nem balbuciava um “desculpe” ou “muito obrigada”, voltava-se para a rua e saía e eu atrás, sem comentários também. Essa coisa me marcou profundamente.
Eu cresci com um baita respeito por ela e também com o senso de muita responsabilidade perante ela. Acompanhei muito de perto a dor dela, seu sofrimento e fiz de tudo o que pude durante toda a minha vida em termos de ajudá-la, de mantê-la. Até a morte dela eu não a vi mais, porque estava no exílio e não podia voltar ao Brasil. Isso na verdade não tem muito a ver com sua pergunta. Faz parte da minha trajetória, da minha rua, da minha estrada. Foi um beco em que entrei agora.
Voltando à sua experiência como professor. As suas primeiras aulas foram particulares?Meus alunos eram meus próprios colegas. Eram muito bons em outras disciplinas e não em Língua Portuguesa.
Com alguns eu permutava, ensinavam-me Matemática, por exemplo, e eu o Português. Outros pagavam. Anita, minha mulher, à vezes reclama porque faço algumas coisas sem cobrar e eu até nunca disse a ela: no tempo em que na verdade precisei eu cobrei e fui muito rigoroso nas cobranças. Mas bastou não precisar muito que eu já reduzi o rigor. Eu sou um pouco gratuito e não me arrependo.
Você também usufruiu de gratuidade na sua formação…O pai de Anita, Dr. Aluisio, dono do Colégio Osvaldo Cruz, em Recife, foi absolutamente gratuito comigo, me possibilitando estudar sem pagar. Não foi bolsa aquilo. Dr. Aluisio me permitiu, me ofereceu estudo como um direito. Ele nunca me chateou e nem à minha mãe para saber se a gente iria e se podia pagar. Não importava ao Aluisio até seu eu pudesse pagar. Ele disse: “eu acredito no que a mãe dele em disse”.
E sua primeira aula?O interessante é que com 16 anos eu escrevia rato com dois erres e interessante com cedilha e aos 19 anos eu já era professor e, cá para nós, eu me achava um grande professor.
A primeira aula particular foi lá mesmo na minha casa, numa salinha. Agora, na homenagem de 70 anos que fizeram para mim em Pernambuco, meu primeiro aluno foi lá, com a esposa dele, me abraçar. Foi meu primeiro aluno. Teve a coragem de fazer essa experiência.
E como foi essa primeira aula?Eu devo ter começado a propor a ele uma compreensão gramatical da estrutura do discurso. O interessante é que naquela época, sem saber nada, eu já partia para compreender as palavras nas relações que elas têm dentro do texto e não as palavras isoladas. Por exemplo, eu nunca dei aulas de verbo, a não ser pedindo aos meninos que criassem sentenças com os verbos.
Esta sua faceta como professor de Português não é muito conhecida. Como você enveredou para a Pedagogia?Houve um momento em minha vida em que eu era conhecido na roda dos professores e também dos colégios como um dos bons professores de Língua Portuguesa. Houve outro momento da minha vida quando, deixando o Magistério, tive o convite para trabalhar no Serviço Social da Indústria, o SESI, recém-criado pela Confederação Nacional Indústria e instituído por decreto presidencial, num momento político que revela certa posição crítica das chamadas forças produtoras das classes dominantes brasileiras, empresariais. Eu tenho quase certeza de que em certo momento dos anos 1940 a classe dominante do Centro-Sul, preponderantemente de São Paulo, anteviu que o processo de presença popular da história política brasileira, a classe operária de São Paulo, seguindo o exemplo dos anos 1920 (com a chegada dos italianos radicais, de esquerda, anarquistas) deu um baita impulso à consciência operária brasileira. É como se a classe dominante dissesse naquele momento: “é preciso fazer o possível para continuar ocultando certas verdades”.
O SESI, o SESC, o SENAI e o SENAC nasceram com essa tarefa, de dourar a pílula, de fazer uma assistência que se estendesse ao assistencialismo e com o qual se faria política, mas a política da classe dominante.
Eu até digo isso sem nenhum medo de estar cometendo uma injustiça. A análise correta para mim é essa. Vejam que coisa maravilhosa.
Eu fui convidado para trabalhar esse recém-fundado SESI de Pernambuco e foi exatamente a minha prática dentro do SESI que me radicalizou.
Você era um agente de ocultação…Eu nunca fui um agente da ocultação e me antecipei como desocultador. Agora, no texto que estou escrevendo, em que retomo a “Pedagogia do Oprimido” faço uma incursão à minha passagem pelo SESI e digo que se bem que ela sozinha não explica a “Pedagogia do Oprimido”, sem ela, porém, eu não posso explicar.
Esta passagem foi e é um dado fundamental que me explica como educador progressista hoje.
Quer dizer que, mesmo servindo aparentemente à classe dominante, você pôde realizar um trabalho de conscientização nos filhos da classe operária…Por aí você vê como estavam equivocados e continuam alguns, espero, em menor número, os sectários de esquerda que afirmavam, por exemplo, que aceitar um simples convite para ir a uma universidade dos Estados Unidos era vender-se ao imperialismo e que esse fato, por si só, significava um atraso ideológico, político. Isso não revela cientificidade nenhuma; revela nenhuma compreensão crítica da História; me dá mais pena do que raiva.
E os empresário paulistas, a FIESP, como está hoje?Naquela época, os empresário eram uma elite de intelectuais – como Roberto Simonsen, pai do Mario Henrique, que era um homem inteligente, grande economista – que foram para mim muito mais clarividentes do que alguns reflexos daquela geração como o Amato. Quando você lê o que diz Amato hoje não tem nada a ver com a clarividência que tinha o Simonsen, por exemplo. Eu acho que houve certo retrocesso na classe dominante.
Mais selvagem…Mais dominante, mais selvagem.
Conte mais sobre a “contribuição” do SESI na sua formação.No SESI em aprendi a estabelecer certa comunicação com a classe trabalhadora, urbana e rural. O SESI me deu essa chance. E foi a aprtir do SESI que eu passei a dar saltos dentro do próprio município e cada vez mais eu comecei a ser chamado para discutir termos pedagógicos. Então, eu fui me tornando um pedagogo também, um cara que pensava a prática educativa e que por isso mesmo propunha certa teoria dessa prática. Eu estou escrevendo muito sobre isso. Agora preciso até me conter.
Conte um pouco a sua experiência com adultos, as reuniões de Pais e Mestres, enquanto diretor da Divisão de Ensino do SESI.Na Divisão de Educação aprendi as técnicas diferentes de ter encontro com grupos de adultos, aprendi, retifiquei os erros que cometi através das críticas que os operários me faziam, começando pelas coisas mais tradicionais até chegar a uma coisa que, eu acho, nunca foi feita em termos de prática na escola, que a gente chamava naquela época, pomposamente, de Círculo de Pais e Mestres e que eu amenizei, chamando de Pais e Professores.
Comecei a fazer círculos, reuniões programadas e conseguia uma seqüência enorme.
Discutia antes com os professores a problemática fundamental que eles viam naquela escola, escolhíamos a temática parcial, porque caberia à família dar a outra ponte. A primeira eu fiz. Daí em diante, terminava uma reunião, fazia-se a temática da próxima, o que eu chamava de “carta temário”. Os professores tinham seminário comigo sobre o tema que ia ser discutido na próxima reunião.
Na “carta temário” eu desafiava os pais para que eles discutissem com os companheiros de rua, com os vizinhos. Eles precisam trazer para o Círculo não a opinião deles, mas da rua toda, do bairro, se possível. Resultado: passamos a ter 95% de frequência.
Isso acontecia em uma Escola?Não. Eram vinte e tantas Escolas do SESI.
O interessante é que o SESI lhe dava espaço, apesar da ideologia…Sim, eu tive todo o espaço para desocultar, apesar da ideologia ser ocultadora.
Você aproveitou a estrutura dos capitalistas para fazer exatamente o contrário da ideologia do capitalismo…Claro, para fazer um trabalho democrático.
Houve algum episódio nesses Círculos de Pais e Professores que você gostaria de contar?Eu Nunca vou esquecer de uma coisa que está dito em inglês, porque contei isso nos Estados Unidos e saiu publicado. Um Círculo de Pais e Professores em que o tema geral que afligia os pais e as famílias era o da disciplina na família, na Escola: o prêmio do castigo.
Eu tinha feito uma pesquisa no SESI com 1.500 famílias e tinha encontrado um resultado trágico: a preponderância era de castigos físicos e violentos. Crianças amarradas com cordas, meninos que apanhavam surras. A única área em que o castigo sumia e caía na licenciosidade mais absoluta era a área praieira. Nesta zona, de pescadores, a relação pai-autoridade-liberdade era total a permissividade. Eu tinha um resultado diante de mim que era absolutamente negativo dos dois lados.
Para discutir o problema do castigo, do prêmio, na relação autoridade-liberdade eu resolvi falar um pouco sobre o código moral da criança, mostrar que ele não tinha nada a ver com o código moral do adulto e que a permissão e a premiação passam pelo código moral.
Ou passam aceitados ou passam rejeitados, mas passam sempre.
Para explicar essa coisa em me baseio todo, já que naquela época, em Piaget.
Para explicar essa coisa em me baseio todo, já que naquela época, em Piaget.
Você pensava que eles entenderiam Piaget?Eu teria que fazer a tradução, adequar o discurso científico de Piaget ao discurso concreto da classe trabalhadora. Ou eu era competente para fazer isso ou meu discurso não seria inteligível. Na época eu não era capaz de fazer isso. Eu não entendia como é que não me entendiam. Era tão claro para mim.
Como é que você aprendeu isso?Com exemplos. Não foi invencionice da minha cabeça. Eu precisei descobrir que estava errado. Então neste tal dia em que eu falei de como alcançar a criança, disse que um dos caminhos era exatamente o diálogo com a criança. Quando acabei, um sujeito se levanta de lá e diz: “nós acabamos de ouvir o Dr. Paulo Freire que falou uma fala realmente muito bonita. Agora eu queria dizer umas coisas ao doutor que eu acho que meus companheiros todos concordam”.
Era um dos pais?Sim, um dos pais. Um sujeito de cara forte mas mansa. Um cara de sabedoria, que falava com certa condescendência, expressava um certa pena de mim. Ele olhou para mim e disse simplesmente “doutor, o senhor sabe onde a gente mora?”. E descreveu, afinal, a geografia da casa dele, a história e a cultura da casa dele. As necessidades dele, da mulher, dos filhos, as pressões para sobreviver a tudo isso. A dor, o cansaço. Chegar em casa de noite, morto de fome e cansaço tendo que acordar no outro dia, às 4 horas da manhã, portanto, tendo que dormir.
E os meninos endiabrados, diabólicos, fazendo o maior barulho do mundo. “Numa situação como essa, doutor, o pai bate e não dialoga. Mas não é porque ele não ama. É porque não pode amar como o senhor pode”. E prosseguiu: “eu vou dizer ao senhor como é a sua casa, eu nunca fui lá, mas vou descrever”. E descreveu perfeitamente a minha casa.
Quer dizer que nós temos um país com esperança ainda. Um homem do povo criticar…Ainda são possíveis as reformas de base…Exatamente, que beleza! Eu vivi estes momentos de esperança, lindos. Que consciência de classe tinha esse homem, sem nunca ter lido Marx nem Engels. Como, a partir do conhecimento da geografia da casa, ele introduzia a vida. Ele sabia os conhecimentos que você tinha e, inclusive, a forma errada de conhecer. Hoje, sem saber seu nome ou se vivo está, ainda não creio. Rendo, através do jornal de um sindicato de trabalhadores, a minha homenagem e meu agradecimento a esse homem. Ele foi meu grande pedagogo.
Naquela noite, qual foi sua reação?Eu confesso a vocês que naquela noite fui afundando na cadeira. Se houvesse possibilidade, eu me escondereia. Às vezes me dá gana de ir lá, ver se ainda existe, perder a humildade e botar uma placa: “AQUI PAULO FREIRE APRENDEU QUE NÃO É POSSÍVEL FAZER SEU DISCURSO PARA O POVO, QUE É PRECISO PRIMEIRO APRENDER A COMPREENSÃO DO MUNDO QUE O POVO ESTÁ TENDO, PARA DEPOIS FALARMOS DA SUA INTELIGÊNCIA”. Dá vontade de fazer isso, mas seria arrogante demais.
O que ficou deste aprendizado na sua formação, nas suas obras?Foram essas coisas que me trouxeram mais tarde como pedagogo, a fazer afirmações como esta, por exemplo, e até hoje, nem todo mundo entendeu: “o ponto de partida de um projeto educacional está na identidade cultural dos educandos e não dos educadores. Está na compreensão de mundo dos educandos. Está na sabedoria de que os educandos estão molhados, ensopados. Não importa que seja saber de experiência feita, portanto, de senso comum. Ninguém supera o senso comum a não ser partindo deste nada. Eu não posso superar o senso comum a partir do meu senso rigoroso. Eu tenho primeiro que assumir a ingenuidade do educando, me papar dela também, depois dar o braço ao educando e partir para superá-la. Isto não se faz! A Escola admite que o aluno é tábua rasa para ela. Não traz nada do mundo e depois que vem para ela continua não recebendo nada do mundo. Só que a Escola dá. Esta não pode prestar, tem que fechá-la”.
Na história das suas reflexões, das que vão poder dar o salto, o reposicionamento, tem sempre o momento do diálogo com alguém qualificado que ajuda este processo…Ah sim. Eu tinha com quem conversar, trocar ideias. Em primeiro lugar, eu batia os papos com Elza, minha primeira mulher, educadora também, a quem devo muito, porque é difícil você viver 42 anos sem dever a ela e ela a você. Senão é cínico, é louco!
Em segundo lugar, eu tinha dois ou três amigos com quem trocava ideia, na acepção correta. O Paulo Rosas era um deles. Além disso, eu recorria a leituras que abriam caminho para mim da compreensão da formação social brasileira, profundamente autoritária. Depois, leituras que me ajudaram a descobrir como essa ideologia autoritária se reproduzia e como ela se manifestava em comportamentos diante dos quais eu estava vivendo.
No seu método de descoberta é interessante como a ideia vem antes da prática: como a gramática e o fascínio por ela o levam a dar aula. É interessante como é que não é o movimento social que o mobiliza de início…Eu acho que o que houve comigo é que há contigo e com todo mundo. Houve um movimento dialético. Em certos casos foi minha ideia, abstração que moveu, em outros, não. Mas sempre a prática testou isso. Quem me faz sair do discurso de Piaget para discutir Piaget com eles, a partir da concretude deles, foram eles e foi a minha prática de fazer um discurso sobre Piaget que me ensinou que estava errado.
Guimarães Rosa, através de um personagem, diz a certa altura: “Toda ação principia mesmo é por uma palavra pensada”. Durante décadas se trabalhou com a ideia de que a classe operária seria a vanguarda das transformações. Neste momento, os trabalhadores passam por um momento muito complexo. Afinal, quem é vanguarda das transformações? Será o povo, a classe trabalhadora ou a intelectualidade que não vive as mesmas condições de necessidades?A prática do oprimido para superar a realidade opressora começou na palavra pensada, que é exatamente o discurso antecipado do oprimido, da história. Enquanto a classe trabalhadora não tiver a possibilidade de teorizar o próprio discurso, somos nós, os chamados intelectuais progressistas que temos que fazer isso, indiscutivelmente. Mas ao fazermos isso, não nos tornamos, necessariamente, vanguardas ou donos ou senhores do processo. Isso é o que muitos de nós fizemos, como intelectuais que pensávamos possuir a verdade revolucionária, que havia sido cientificamente proclamada, mas não necessariamente realizada.
Mesmo depois dos acontecimentos no Leste Europeu?Para mim, depois de tudo isso que ocorreu no Leste Europeu, eu não vejo porquê me desiludir da utopia socialista. Eu acho que na história, pela primeira vez, a gente está diante de uma possibilidade , ao reconhecer que a experiência anterior do socialismo nasceu equivocada porque se deu toda ela metida numa moldura autoritária. O que não prestou na experiência do Leste Europeu não foi o socialismo, não. Foi a moldura autoritária dentro da qual o socialismo se extraviou. Assim como o que presta no Ocidente não é o capitalismo, não. É a moldura democrática da qual o capitalismo se serviu. O que a gente precisa hoje é motivar-se por uma outra luta, ainda pelo socialismo, mas arrebentando as molduras autoritárias em que foi metido e arrebentando a moldura democrática que está cobrindo e encobrindo o capitalismo para superar, mesmo agora, o capitalismo. Do ponto de vista da compreensão histórica, eu nunca estive tão otimista. Eu nunca percebi um momento tão importante para a prática pedagógica quanto este.
Uma volta aos anos 60?Não voltando ao pedagogismo dos anos 60, em que se pensou que prática educativa, sozinha faria revolução. Mas agora reconhecendo os limites da prática do capitalismo e descobrindo a força da educação, que está na fraqueza dela. Elsa sozinha não faz a mudança social, mas também, a convicção – e aé vem a fortaleza da Educação – de que não é possível fazer mudança sem ela.
O que a gente tem a fazer hoje é instalar-ser num otimismo crítico, de que a prática educativa – que se dirija no sentido de desocultação das verdades – é absolutamente indispensável à mudança do mundo.
O que leva um jovem hoje a querer ser professor? O que seria hoje o trabalho do professor no quadro de desesperança em que o indivíduo já não influi. O que motivaria um professor a dar aula?A boniteza do momento de dar aula independente. Ela faz parte da natureza do ser da prática educativa. Por isso que eu acho tão importante que o educador se assuma fazendo boniteza. No fundo, as quatro dimensões da natureza da prática educadora são: a gnoseológica, a estética, a ética e a política.
A prática educativa fecha essas quatro dimensões. Como educador, o professor faz política, então, ele tem que se assumir politicamente. Para saber que ele tem um sonho que é político. Qual a utopia dele? Que modelo da sociedade ele gostaria de provocar, de produzir com os outros? Neste momento, independente do salário, o professor descobre mais boniteza ainda em sua prática.
O professor, também, tem que mudar a postura. Se é coerente e progressista, o professor tem que saber que não pode mediar nenhuma atitude dominante. Ele é o refazedor do feito. Propor ao aluno que re-saiba o sabido, que reconheça o conhecido, que reproduza o produzido. Isso é produzir uma postura crítica no educando. Isso só o sujeito faz. E quanto mais você faz, mais se capacita para trabalhar a transformação utópica da sociedade.
Chamar o aluno a assumir-se enquanto o conhecedor, não recipiente do conhecimento que se transfere. É assim que ele vai aprender. O que libertará o menino operário, se ele entrar num processo de luta política, é a consciência de que pode conhecer e pode fazer História.
Entrevista inédita de Paulo Freire
(dada à jornalista Marta Luz da Rádio Juazeiro,
BA - Dia 24/04/1983 – Programa “Juazeiro
Panorama”)
Marta – Paulo, o que é “método Paulo Freire”
de educação?
Paulo Freire - Marta, antes de ensaiar uma
resposta, que não é nada fácil de ser dada, a essa
sua pergunta com a qual, em todo mundo, sempre
começo uma conversa, gostaria de agradecer a
você, à rádio que você representa e a seus
companheiros de trabalho nessa rádio, essa
possibilidade que me dão de entrar nas casas dos
ouvintes e levar a eles o meu “boa noite” e de
levar a eles, e também a elas, quem sabe, algumas
interrogações, algumas dúvidas, no campo geral
da educação, no campo da compreensão do ser
humano... Depois deste “muito obrigado” que
deixo aqui, com muita sinceridade, tentarei
responder à sua pergunta primeira.
Talvez, eu devesse dizer a você que, apesar
da insistência com que muita gente, há muito
tempo, vem falando, no Brasil, de “método Paulo
Freire”, até não me agrada muito isso. Mas, isto é
um fato e, tenho que discutir os fatos. Apesar da
insistência com que se fala nesta história do
chamado “método Paulo Freire”, tenho a
impressão, Marta, com talvez um pouco de
imodéstia, que se trata muito mais de uma certa
compreensão geral da educação, de uma maneira
de praticar a educação, do que propriamente de
um método. Claro, que nessa compreensão geral
da educação que tem a ver com uma prática
coincidente com essa compreensão geral, há um
método, entende? Quer dizer, no fundo, o método
cabe aí dentro, está aí dentro. Por isso, disse que,
talvez, eu fique pouco humilde ao dizer que a
questão vai mais além do método, para alcançar
uma própria compreensão da educação.
Quer dizer, que diabo é isso de educação
para mim? Como é que eu vejo a educação,
enquanto educador que também é educando,
enquanto professor que também é aluno? Então,
com tua licença, e refaço a pergunta (apesar de
considerar que tua pergunta é correta, pois, é por
aí que, em geral, se começa uma conversa
comigo) eu diria, Marta, que há um sem-número de aspectos, um sem-número de temperos, nessa
compreensão de educação que venho defendendo,
e propondo, e praticando. Mas, ficaria com o que
acho que é interessante dizer aos que me ouvem,
agora.
Esse elemento que gostaria de sublinhar,
de chamar a atenção, nessa compreensão e prática
da educação que defendo, é o da l i b e r d a d e do
educando, é o da l i b e r d a d e do educador. É o
respeito, portanto, que o educador deve impor a si
mesmo, do respeito ao educando para que ele
também possa se respeitar. É o respeito ao
educando, no sentido de que o educando vá se
construindo como gente, em lugar de ir se
reprimindo e virando coisa. A educação deveria
ser exatamente isso: uma prática, uma experiência
de criação e recriação da própria vida. A educação
tem muito a ver com a poesia, por isso, a educação
é um pouco de arte também, a Educação é essa
constante busca de criar.
Veja você, a responsabilidade que a gente
tem, enquanto educador. É que a gente está diante
de outro ser e a nossa arte de criar e recriar tem a
ver com o outro ser! Só que eu não tenho o direito
de eu recriar a ti, se tu és minha educanda. Esse é
o papel que te cabe: o papel de te refazer, com a
minha ajuda. Mas, ao mesmo tempo, com que te
ajudo como educador e tu como educanda, a que
tu te faças e refaças, ao ajudar que tu te refaças, tu
me ajudas a que eu me refaça também. Então, é
esse aspecto que acho fundamental, de como
entendo a educação. Às vezes, me espanto de
como me entendem mal, como me colocam como
uma espécie de “demônio misterioso”! É o que eu
gostaria de dizer respondendo à tua pergunta.
Talvez tenha me estendido muito; mas, era uma
maneira de precisar, até sinteticamente, e dizer a ti
como me vejo como educador mais do que como
“metodólogo”.
Marta – De modo geral, a educação, segundo as
suas palavras, deprime. O que é que é educação
que deprime? Traduza concretamente.
Paulo – É claro que não é toda educação a que
deprime; não é toda educação a que redime. É
preciso ver que educação é. Digo que é preciso
que, nós os educadores, sempre nos perguntemos:
a serviço de quem nós estamos? A serviço de que
nós estamos? Como educador, estou trabalhando a
serviço de que? O que é que eu quero? Qual é o
meu sonho? Claro que meu sonho que é um sonho de liberdade, que é um sonho de criatividade, um
sonho de aventura, um sonho de risco... Esse
sonho não pode ser viabilizado, possibilitado,
através de uma educação que reprime, de uma
educação que amesquinha. E que educação é essa?
É exatamente a educação que domestica, é a
educação através da qual o educador exerce um
poder arbitrário de “possuir” a pessoa do
educando, nos seus mínimos pormenores.
O educando não pode escolher o livro que
deve ler, porque “o educador é que sabe”. O
educando em casa, p. ex., o filho não tem o direito
de escolher a melhor hora de estudar (como eu
dizia, ontem à noite). Veja bem, Marta, eu não
estou propondo que o educador se omita, seja ele
pai, ou seja ela mãe, que desapareça, entende?
Mas o que não é possível é que a presença do
educador, no processo educativo, se agigante de
tal maneira, se exacerbe de tal maneira, que a
presença do educando, ou melhor, que o educando
vire sombra do educador. Isso é um absurdo! Se
minha presença, na minha casa ou na
universidade, diante dos meus alunos, é uma
presença de gigante arbitrário, todo-poderoso,
mandão, como a gente tem no mundo tantos
exemplos, o que seria da presença dos meus filhos
em casa? E o que seria da presença dos estudantes
que trabalham comigo, na universidade? Essas
presenças teriam desaparecido e, em lugar delas,
eu teria sombras pequeninhas de mim! Ora, essa
seria uma educação deprimente, uma educação
diminuidora da pessoa humana.
Pelo contrário, o educador que trabalha em
favor da pessoa é exatamente o educador que fica
porque some, entende? Talvez precise explicar um
pouco melhor ao ouvinte, em casa, porque isso é
uma coisa meio doida dizer: como é que esse cara
pode ficar se ele sumiu? O que quero dizer com
"sumiu" não é sumir fisicamente, ir embora,
fechar a porta, desaparecer. Eu como pai, nunca
desertei de minha casa. Mas, acontece que só pude
permanecer na minha casa, porque fui capaz de
aprender a transformar a minha presença, não
numa presença diminuidora da presença de meus
filhos. E é a isso que estou chamando de sumir
para poder ficar.
Ao contrário, o pai que insiste em ficar é o
pai que termina desaparecendo. Ele insiste tanto
em ficar, ele sublinha, ele exacerba tanto sua
presença que ela termina sendo rejeitada, afetiva e
moralmente, pelo filho ou pelo educando. Eu não sei se te esclareceu. É claro, que essa temática é
muito bonita, não é? Eu acho que tu percebes,
imediatamente, porque tu (neste mínimo de tempo
que tenho conversado contigo), me parece, que és
uma mulher com sensibilidade poética. E,
portanto, és capaz de perceber, e perceber o que
significa "sair pra ficar". Porque o poeta é uma
presença que não se impõe. A presença do poeta é
uma presença que acalenta, que desafia e que
desvela, mas que não molesta e que não se
superpõe à presença de quem ama a poesia. Acho
que tu és muito isto. Então, podes entender o
discurso de uma pedagogia de liberdade.
Marta – É. Pelo menos, amo e muito! Mas,
Paulo, durante esta semana, no seu encontro
com a comunidade Juazeirense, você enfocou,
de maneira muito forte, o tema "autoritarismo".
E o fez, diga-se de passagem, de maneira
luminosa. Por que esse tema? Qual a razão de
sua escolha? O que é que é isso?
Paulo - Acho que essa também é uma excelente
pergunta. Por que esse tema? Por que, em lugar
disso, não falei da minha própria experiência geral
da educação? Por que é que não falei sobre
"métodos e processos na educação?" Por que é
que falei sobre isso, sobre educação e
autoritarismo? Educação e liberdade? Foi de
propósito, Marta, porque não há coisa gratuita,
entende? A educação, como dizia ontem, também
não é uma prática neutra do "deixa como está para
ver como é que fica". Falei sobre o autoritarismo
porque, como brasileiro, a mim me dói,
profundamente, que a gente pouco faça para dar
um mínimo de contribuição no processo histórico
brasileiro que independe da minha vida e da tua,
enquanto indivíduos. Porque a vida do País, e a
alma dele, são maiores do que a nossa vida e a
nossa alma. Porque a nossa vida e a nossa alma se
constituem na vida do País inteiro, da nossa
comunidade brasileira. Acho que a gente faz
pouco, contribui pouco para o processo de real
participação democrática do povo brasileiro, na
sua história. É preciso que a gente viva mesmo a
democracia. Que a gente acredite nela.
Mas, no Brasil (coisa incrível!), a gente vê,
(não quero nem fazer citações pessoais; não por
medo, mas por uma questão até de método de
trabalho). Mas, repara, Marta, como essa falta da
sensibilidade democrática que é, portanto,
autoritária, ocorre entre nós, diariamente. Veja
como certos homens públicos, de responsabilidade nacional histórica indiscutível, que no seu
discurso revelam uma tal insensibilidade pela
liberdade do povo, pelo direito que o povo tem de
manifestar-se e de escolher - tal discurso revela
uma certa malquerença com a liberdade. Uma
certa indisposição como se a liberdade fosse um
inseto daninho, que faz mal ao cara, mas o cara
fala em nome dela, entende? Isso é que é um
negócio tremendo.
Veja: tenho ouvido tanto e lido tanto,
declarações antes do meu exílio, durante meu
exílio, depois da minha volta, homens de
responsabilidades enormes, neste País, “fazer
beicinho”, com raiva de um resultado de eleição.
E declarar que o povo não pode eleger seus
prefeitos porque vota mal, porque vota errado!
Mas, que autoridade tenho pra dizer que o povo
esta votando errado, sô?! Quando o povo do Rio
de Janeiro elegeu o líder Juruna, houve gente de
muita responsabilidade no Brasil, que disse
também que o povo votou mal, não soube votar,
que isso é um desperdício. Mas que direito tenho
de dizer que votar no Juruna é um desperdício?
Que votar no Timóteo é um desperdício?
Essa afirmação, em primeiro lugar, me
parece profundamente elitista, afirmação de gente
da elite, realmente. E a elite tem uma raiva danada
da massa popular, tem um ódio! Uma coisa que
me dá susto é a raiva que a elite tem da massa
popular brasileira. E porque é elitista, essa
inteligência do fato é profundamente autoritária.
Então, ontem, minha preocupação quando
coloquei, quando me perguntei sobre o que falar,
em Juazeiro, achei que devia falar sobre
autoritarismo. E sem fazer referências pessoais a
ninguém, como você viu, ontem eu não fiz, a não
ser me referir genericamente, em tese, ao
professor, ao pai, ao político, ao bispo, ao
sacerdote. Mas, não a este professor, a este pai, a
este sacerdote, a este bispo, a tal político. Como
brasileiro, não é só um direito que tenho, mas é
um dever que tenho.
É evidente que por isso mesmo, como não
sou autoritário, não faço um discurso autoritário
contra o autoritarismo. Porque há também isso. Há
quem faça discursos autoritários contra o
autoritarismo. Acho, Marta, que um dos temas, no
Brasil, tão importante quanto outros temas, é esse
do autoritarismo. Acho que tanto quanto a gente
possa, deve dizer algo sempre sobre isso, sem
raivas, sem ódios, nada disso. Meu problema não é estar aqui zangado com a ou b, é tentar uma
análise objetiva de um fenômeno do qual nós
todos fazemos parte. Como brasileiro, também
tive meus momentos autoritários na minha
adolescência, na minha juventude. Eu precisei
aprender disso tudo, tive, no fundo, que fazer uma
opção que confirmei numa prática. E é por isso
que, como professor, ainda que eu seja, que eu
fosse desafiado pelos estudantes para virar
autoritário, não aceitaria o desafio.
Marta – Certo. Paulo, retomando o 1º. e o 2º.
degrau de nossa escalada aqui, ou continuando,
após este 2º. que trata do autoritarismo, quero
lhe fazer uma pergunta. Uma pergunta assim
bem tipo detalhe, uma indagação: aqui pelo
Nordeste, pelo nosso Nordeste, no meu e no seu
Nordeste, existem aqui e acolá, algumas escolas
que costumam adotar o sistema, o método de, p.
ex., tirar pontos de uma aluna, numa nota obtida
em prova, em trabalho de pesquisa, por conta do
comportamento, da disciplina. Gostaria de ouvir
sua opinião sobre isto. O que é que você acha e
porque acha assim?
Paulo - Marta, acho um absurdo isso. E vou dizer
por acho. Vamos discutir, em termos muito
concreto, o exemplo concreto que você colocou
muito concretamente. Mas, minha resposta quero
que seja concreta também, como tua pergunta.
Vamos admitir que eu trabalhasse com um grupo
de 20 estudantes e, um dia lá, os estudantes
devem, por uma questão do próprio processo
acadêmico (estou me referindo ao caso
universitário, mas é a mesma coisa), e que eles
devem me apresentar um tema. Um texto que eu
sugeri, que escrevessem e me trouxeram. Vamos
admitir que, no dia mesmo em que os estudantes
me entregaram o texto, um deles, no próprio
seminário, foi grosseiro com o seu colega e até
mesmo comigo. Não houve isso, é um caso
hipotético. Aí, levo os textos dos estudantes pra
casa, sei quem são, conheço o trabalho de todo
mundo porque tem seus nomes... E, lá pelas
tantas, me deparo com o texto do moço que foi
grosseirão com o seu companheiro, que foi pouco
cortês comigo também e que apresenta um
trabalho excelente. E aí, digo a mim mesmo: bem
vou dar 6 a este rapaz. Ele merecia 10, mas vou
dar 6 porque ele foi grosseiro, hoje. Ora, que
direito eu teria de fazer isso?
O moço escreveu um texto ao qual eu devo
dar uma nota; devo julgar o trabalho do moço e não a conduta que ele teve. Esse negócio de julgar
a conduta que ele teve lá e atribuir uma nota,
diminuir a nota do trabalho científico que realizou,
é um absurdo! Não tem o que ver uma coisa com a
outra, isso é um ato autoritário, arbitrário. O que
pode haver é o seguinte: o que eu posso fazer, se
houver inclusive necessidade para isso, é
repreender o moço, é chamar a atenção do moço,
certo? Agora, diminuir a nota que o trabalho dele
merece porque ele foi grosseiro com o colega,
não, não! Se acho absurdo isto no nível da
universidade, isso é absurdo no nível da escola
primária, também.
Marta: Certo, deu pra entender. Paulo Freire,
exílio! Uma palavra bela, pelo menos do pondo
de vista poético. Parece-me que sua vivência é
grandiosa! Pelo menos, na literatura, a gente
percebe que é grande a riqueza daqueles que a
tiveram; em termos de obras, de poemas, de
pinturas, de música... O Prêmio Nobel do ano
passado que o diga. Fale-nos um pouco sobre
isto. Qual a riqueza maior que você traz do
exílio?
Paulo - Olhe, eu não seria capaz, Marta, de dizer
qual a riqueza maior, mas seria capaz de falar
alguma dessas riquezas, de te falar, uma dessas
riquezas que o exílio me proporcionou. Sem que
eu seja masoquista, sem que eu goste de sofrer, foi
a riqueza de aprender a conviver com minha
saudade, não deixar que a saudade virasse
nostalgia. Porque guando a saudade vira nostalgia,
tu te infernas. O que aconteceu comigo é que
cuidei da minha saudade; tratei bem dela. Como
tratei bem da minha saudade, tratei bem da minha
saudade, tratando bem das minhas marcas. Das
marcas da minha cultura que meu povo me deu.
Tratei bem da minha saudade porque
aprendi, fora e longe do Brasil, diariamente, a ter
o Brasil como uma pré-ocupação e um cuidado
enorme. A convivência com a saudade que virou
uma saudade mansa: bem comportada, educada;
uma saudade que não choramingava, uma saudade
que dormia direito. Então, essa coisa é uma das
riquezas que o exílio me ensinou.
A outra coisa que o exílio também me
ensinou, e dela eu falei um pouco ontem, noutra
perspectiva, foi a de cultivar uma paciência
impaciente. Eu tinha profunda paciência por estar
longe do Brasil, mas, ao mesmo tempo, minha
paciência me envolvia e me amaciava a saudade; a
impaciência por voltar alimentava também a saudade. Não sei se está claro isto. De um lado, a
paciência me ajudava a ter uma saudade mansa do
Brasil. Do outro, a impaciência da volta me
ajudava a saudade de continuar a existir e,
portanto, a que eu não me esquecesse de mim
mesmo, isto é, do Brasil. Esse foi um outro
imenso ensinamento de riqueza que a gente
cultivou no exílio.
Outra riqueza que o exílio também nos deu
a nós, a mim, a minha mulher, a meus filhos, foi a
de que a cultura não se trata com juízos de valor.
Em outras palavras: aprendemos, no exílio, que
não há nenhuma forma de ser, de povo nenhum,
que seja superior ou inferior a outra. Nós, os
brasileiros, somos tão formidáveis e tão
deficientes quanto os suíços são eficientes,
competentes e maus também. Quer dizer: não há
uma forma de cultura que seja melhor que a outra.
E toda vez que uma cultura de um grupo social de
um país se pretenda superior a outra, ela tende a
uma postura autoritária e totalitária. Isto nós
aprendemos também. Aprendemos, no Chile, a
viver diferentemente do Brasil e não superior ou
inferiormente. Aprendemos nos Estados Unidos,
quando fui professor de universidades e morei lá,
com meus filhos. Aprendemos a compreender as
formas de ser dos Estados Unidos com relação a
nós. Não são nem melhor nem pior que nós.
Aprendemos na Europa, vivendo na Suíça, em
Genebra, uma cidade linda que parece um cartão
postal. Aprendemos a compreender o suíço na sua
frieza, na sua distância, mas isso não significa, de
jeito nenhum, que pelo fato de ser frio
afetivamente distante, que não é gente.
Aprendemos na África, aprendemos na Ásia, no
mundo, afinal.
A andarilhagem a que o exílio me levou,
me ensinou profundamente a ser de novo. No
fundo, eu nunca deixei de ser. E a própria saudade
do Brasil que aprendi a amaciar, jamais me fez
triste. Eu e minha família jamais fomos infelizes
no exilio. E até quando nós não admitíamos a
hipótese de poder voltar porque, durante muito
tempo do exílio, nunca mantivemos ou nunca
tivemos a ilusão da volta. Nós pensávamos que os
filhos voltariam, mas nós não. Então, quando deu
pra voltar, foi uma maravilha, entende? Você não
imagina, Marta, quando, no dia em que deu pra
voltar eu não pude ficar mais, de jeito nenhum, na
Europa: Então....
Marta - ... a paciência ficou impaciente demais... Paulo - Ficou demais, você disse muito bem.
Nesse momento, a impaciência ganhou, realmente,
da paciência... Eu peguei o avião e vim embora
com a Elza. Ficou um filho, ficou uma filha, uma
filha que se casou. Ficou um filho que, se
estivesse aqui, poderia até dar um presente a ti, ao
povo que nos escuta, porque ele é um grande
violonista clássico. É professor hoje, na Suíça,
com 26 anos - rapaz excelente! Ele teve que ficar
lá; ele não tem ainda condição de voltar para o
Brasil, como professor de violão clássico, como
concertista. Mas ele vem todo ano ao Brasil. Ele
diz “Papai, eu não aguento”! Então, a brasilidade
em nós, jamais se acabou. No fundo, Marta, minha
recificidade explica a minha pernambucanidade;
assim como minha pernambucanidade explica a
minha brasilidade, a minha brasilidade explica a
minha latinoamericanidade e a minha
latinoamericanidade me faz um homem do
mundo. Isso o exílio me ensinou. E tu não
imaginas como o exílio me trouxe, de novo, ao
Recife, às raízes do Recife: Capibaribe,
Capiberibe... Aquela coisa linda do Manuel
Bandeira que vinhas recitando tão excelentemente,
gostosamente, no carro.
Marta - Paulo, acho que o Brasil tem que estar
louvando mil vezes, milhões, bilhões a Deus por
tua volta. Mas, conversando, de novo, com
relação a Juazeiro, lhe pergunto: você voltou,
seu método refloresceu, refloresce – Aleluia! - a
diocese de Juazeiro está ensejando um trabalho
seu com 20 monitores, na perspectiva de uma
educação libertadora... você acredita nisso aqui?
Paulo - Acredito, Marta. Onde quer que haja
gente, onde quer que haja mulher e homem,
acredito que se possa fazer alguma coisa. Para
mim o importante é fazer. Eu não posso é deixar
para amanhã o que devo fazer hoje. E é por isso
que, às vezes, me canso; porque, em geral, atendo
aos chamados. Não porque me ache “bonzinho”!
Tenho horror a esta palavra. Não sou bonzinho, de
jeito nenhum. Mas, é porque acho que tenho um
compromisso, como nós todos temos. Afinal,
existir é comprometer-se. O que a gente não pode,
Marta, e sobre isso vou conversar bem, amanhã
possivelmente, com D. Jose – o que a gente não
pode é pensar, ou melhor, é animar ou embalarnos
em sonhos muito idealistas, que saiam do real.
É claro, que nossa vinda agora, é muito
mais uma vinda exploratória de trabalho. Temos passado esses dias todos e tenho achado uma coisa
fantástica, pra mim, pra Elza, como oportunidade
de crescimento. Como oportunidade de reconhecer
o conhecido. Tem sido uma beleza! Passamos de 9
da manhã ao meio dia, de 2 às 6, discutindo,
debatendo, analisando, problema por problema. E
os problemas são sempre postos a nós por eles,
problemas da prática deles. O cara diz: "Olhe,
Paulo, trabalho tal... certa vez, em certo
momento... aí, tenho tal problema... Como
confrontar esse problema? Então, tento
compreender, teoricamente, o problema concreto
que vem da prática. E, ao fazer isto, a gente vai,
de certa forma, capacitando e recapacitando os
quadros que estão ai. Isso não significa, porém,
que amanhã, que depois de amanhã, segundafeira-que-vem,
a equipe que esta aí possa realizar
um esforço de capacitação de outros quadros a um
nível que satisfaça à própria equipe. Mas, Marta,
“só se aprende fazendo”. Então, o que vou dizer
ao D. José e a eles, quando me despedir, é que não
tenham medo de começar a fazer. E no caso deles,
aliás, o que já- fazem. Acho que há trabalhos aí
fantásticos, independentemente de mim. Há
trabalhos ai excelentes que revelam, inclusive,
uma dadivosidade enorme por parte da equipe de
jovens com quem estou trabalhando.
Marta - Paulo Freire, a gente até se esquece que
é jornalista e ficaria o dia inteiro ouvindo você.
Mas, tempo em rádio é muito importante e vou
lhe fazer, agora, uma última pergunta. Entre os
seus livros, extraordinários, há um que chama a
atenção - "Pedagogia do 0primido". Por que
essa ênfase assim tão forte no oprimido, no que
diz respeito à pedagogia?
Paulo - Pelo seguinte, Marta: porque nesse livro
que escrevi em 1968... Bem, é bom, na resposta a
ti, agora, contar um pouquinho da história desse
livro. Depois, não tenho dúvida nenhuma, que
terás que pegar esse papo todo que eu estou tendo.
Serás obrigada a fazer uma montagem porque
talvez não disponhas de tempo, da própria rádio,
de meter esse papo tão grande que estou tendo
aqui contigo. E não fico triste, de jeito nenhum. Só
pediria que guardasses esse papo porque acho que,
no fundo, fico contente de saber que estou vivo,
que estarei vivo em Juazeiro, mesmo depois de
morto, com essa VOZ que fica aqui.
Mas, bem... um pouco, rapidamente, a
história desse livro. Escrevi esse livro, a partir de
minha prática, a partir da minha experiência, no Brasil; escrevi já no exilio, no Chile, em 1968.
Escrevi esse livro em 15 dias, os três primeiros
capítulos do livro escrevi, em 15 dias. De noite
trabalhava, até 3 horas da manhã e depois ia
dormir; a Elza levantava e lia. Lia o que eu tinha
escrito e, às vezes, me acordava e dizia rindo:
“Paulo, depois desse livro, o novo exílio talvez
seja na lua”. Eu ria muito com as advertências
dela. Por isso que, na dedicatória, digo que ela é
minha primeira ouvinte - primeira ouvinte! Estou
falando no rádio – ela é a minha primeira leitora.
Escrevi esse livro, e uma das intenções ao
escrever esse livro era mostrar que os oprimidos
precisam de uma pedagogia sua, que não estou
propondo que seja esta que escrevi, entende?
Escrevi sobre isso. Eu dizia que essa pedagogia
tem que ser forjada por ele, oprimido, e não pelo
opressor, independentemente da boa vontade
individual do opressor, independe disso! O
opressor não pode fazer a pedagogia do oprimido,
como o oprimido não pode fazer a pedagogia do
opressor. Pedagogia do opressor quem faz é o
opressor mesmo. Como a pedagogia do oprimido
tem que ser feita por ele. E tem que ser feita,
elaborada, reelaborada, na prática da sua
libertação. Você me diria: mas, Paulo, e qual é o
papel teu, o papel meu, o papel de outro que, não
sendo opressor, também não é oprimido?
Aí, eu diria: no ato de forjar esta
pedagogia, essa pedagogia é forjada pelo oprimido
e por aqueles e aquelas que aderem a ele. Por isso,
é que falo, na própria "Pedagogia do Oprimido",
usando uma linguagem que também reflete minha
marca cristã, que para você, que não sendo
participante originariamente da classe ou do grupo
social oprimido... para que você participe dele,
adira a ele, em certo sentido, você tem que fazer a
verdadeira Páscoa. Quer dizer, você tem que fazer
a Passagem, você tem que fazer a Travessia. Essa
Travessia implica em que tu tenhas que morrer um
pouco, pra renascer diferentemente. Essa coisa, na
verdade, é baitamente difícil, entende? Eu não vim
pr'aqui, feito os fariseus, bater com a mão no peito
e dizer: "eu sou o pedagogo dos oprimidos”, de
jeito nenhum. Humildemente digo: sou um, entre
outros educadores, que se afligem com a situação
dos oprimidos. E que tento fazer um mínimo de
cumprimento de uma tarefa, certo?
Marta: Deixe uma mensagem para os
educadores de Juazeiro e Petrolina. Paulo - Muito bem. Comecei esse papo com
Marta que me agradou muito. Sem querer te
deixar numa felicidade falsa porque é coisa que
não gosto, quero te dizer que “poxa”! Afinal de
contas, na medida mesmo que esse livro
“Pedagogia do Oprimido", está traduzido em 17
línguas, no mundo todo, significa que há uma
quantidade grande da humanidade que me lê. Ás
vezes, fico pensando, viu Marta, que esse troço
não me deixa besta, de jeito nenhum, pelo
contrário, aumenta é o sentido da minha
responsabilidade.
Quer dizer, na medida em que esse livro
está em 17 idiomas, esses 17 idiomas cobrem o
mundo. Acontece que faz 10 anos ou 13 que esse
livro se reproduz em 17 línguas. Então, no
mínimo, são 800 mil, um milhão, um milhão e
quinhentos mil pessoas andam lendo isso. E
quando ando e peregrino, por esses pedaços de
mundo, tenho sido muito entrevistado. Ora pra
jornal, ora para rádio e ora para televisão,
constantemente. Sem falar nas entrevistas de
Universidades que guardam, nos seus arquivos 3
horas de papos comigo pra arquivo, pra estudo,
tudo. Mas, uma coisa que quero te dizer é que
nesse papo contigo foi um dos mais gostosos que
eu tive. Assim que me deixa, que me deixou em
paz; foi assim uma espécie de repouso para mim.
Comecei agradecendo, sinceramente, ao
fato de você me trazer e, através da rádio, falar
com um sem-número de gente que não conheço e
que possivelmente não vou ver, mas que me ouve.
Termino agradecendo, pessoalmente, o próprio
papo que me ofereceste; o próprio momento dessa
conversa que tu me ofereceste. E, ao fazer esse
agradecimento, montado nesse agradecimento,
diria a meus colegas e minhas colegas professoras
e professores dessa área que a emissora cobre -
professoras primárias, professoras leigas,
professoras que não passaram pela escola
normal... não importa. Minhas colegas e meus
colegas educadores, deixo aqui a todos um grande
abraço. Mas, um abraço não formal, um abraço de
Esperança. De Esperança em que, apesar de tudo,
e quando nada seja favorável, sequer a ter
Esperança, que a gente e, portanto, eles também
continuem a ter.
Um abração pra ti também e... Boa noite!
Entrevista com Paulo Freire e o educador Moacir Gaotti
O educador Paulo Freire não gosta de dar entrevistas. Ele reclama que a imprensa deturpa suas declarações. Ao anunciar o projeto pedagógico que pretendia implantar quando assumiu a secretaria Municipal da Educação de São Paulo, em 1989, um grande jornal paulista anunciou em manchete no dia seguinte: "A partir de agora, escrever errada será certo".
Para superar essa resistência, Nova Escola teve uma ideia: que tal convidar o também educador Moacir Gadotti, amigo pessoal e chefe de gabinete do secretário Paulo Freire, para um bate-papo com ele? Isso traria a vantagem adicional de propiciar uma conversa mais aberta e mais rica, um diálogo entre dois educadores profundamente comprometidos com a transformação da escola brasileira.
Deu certo. E o resultado foi uma aula de vida, em que Paulo Freire coloca sua aguda inteligência para refletir sobre sua experiência como secretário da Educação, sobre os rumos do ensino público, sobre liberdade, sobre democracia, e sobretudo falar de sua esperança, que ele retrata no livro Pedagogia da Esperança - Um Reencontro cem a Pedagogia do Oprimido (Paz e Terra). A esperança de que é possível acabar com a opressão, com a miséria, com a intolerância e transformar o mundo num lugar mais gostoso e mais justo para se viver. "A esperança faz parte de mim como o ar que respiro". define.
Mais importante educador brasileiro, conhecido e respeitado em todo o mundo, Paulo Freire já escreveu mais de 30 livros, entre eles Pedagogia da Oprimido, de 1968, um marco na pedagogia brasileira e que influenciou educadores em todas as partes do mundo. Aos 72 anos, Freire continua produzindo num ritmo impressionante. Desde que deixou a Secretaria, em 1991, já escreveu quatro livros - Educação na Cidade (Cortez), Professora Sim, Ta Não - Cartas a Quem Ousa Ensinar (Olho D'Água) e Política e Educação (Cortez), além de Pedagogia da Esperança. E está terminando o quinto, que se chamará Cartas a Cristina. Cristina é uma sobrinha, também educadora, com quem se correspondia nos tempos de exílio.
Por causa de sua pedagogia libertadora e sua militância política, Paulo Freire foi exilado após o golpe militar de 1964. Retornou ao Brasil em 1980, após a anistia. No exílio, desenvolveu projetos em vários países da América Latina, Europa e África, lecionou na Universidade de Harvard, nos Estados Unidos. A maior parte do tempo trabalhou para o Conselho Mundial de Igrejas, com sede em Genebra, na Suíça.
Nove anos depois do retorno, assumiu a Secretaria Municipal da Educação de São Paulo, na gestão da petista Luíza Erundina, cargo que ocupou por dois anos e meio. Acusações semelhantes às que lhe foram dirigidas durante o regime militar ele sofre agora da atual administração paulistana, chefiada por Paulo Maluf: a de desenvolver uma proposta pedagógica politizada e ideológica. Paulo Freire se defende dessas acusações nesse bate-papo com Moacir Gadotti, outro importante educador brasileiro, autor de 15 livros, dos quais os dois últimos - História das Idéias Pedagógicas (Ática) e Pedagogia da Práxis (Instituto Paulo Freire) - acabaram de ser lançados.
Moacir Gadotti - O brasileiro é um povo que vive de esperanças,só que uma atrás da outra vão embora, e sempre vem a frustração depois. Foi assim com as diretas já, com a Constituinte, com o Collor... Hoje vivemos um momento de incertezas, parece que o chão que pisamos está se movendo, e nós, no Brasil, não conseguimos enxergar a dia de amanhã. De onde vem essa esperança de que é possível transformar o mundo a que você se refere em Pedagogia da Esperança?
Paulo Freire - É uma pergunta que exige uma reflexão, mesmo que sucinta, em torno de nós próprios. O que estamos sendo no mundo João, Maria, Carlos? E não importa aí a classe social, embora esta tenha uma influência fantástica na forma como estamos sendo. Mas o que estamos sendo, por que estamos sendo, como estamos sendo, quem estamos sendo? Isso me permite fazer comparações. Por exemplo: olho agora o quintalzinho de minha casa e vejo outros seres também vivos, mas de ordem natural -uma jabuticabeira e o canil onde está o Jim, um pastor alemão -, e já poderia estabelecer comparações entre como eu estou sendo, como a jabuticabeira está sendo e como o Jim está sendo. Sem ir muito longe, eu chego a uma primeira conclusão, de que as relações que há entre eu e as minhas jabuticabeiras e entre eu e Jim não são as mesmas que há entre eu e você. Há uma qualidade diferente nessas relações. Segundo, eu posso tomar como referência, para me distinguir dos outros dois seres (o Jim e a jabuticabeira), que, embora os três seres sejamos finitos, inacabados, incompletos, imperfeitos, somente eu entre os três sei que somos finitos, inacabados e incompletos. A jabuticabeira não sabe. Ela tem outro tipo de saber.
Gadotti - É isso que você quer dizer quando escreve no livro que "eu sou esperançoso, por imperativo existencial"?
Freire - É isso também. Eu sou esperançoso porque não posso deixar de ser esperançoso como ser humano. Esse ser que é finito e que se sabe finito, e porque é inacabado sabendo que é inacabado, necessariamente é um ser que procura. Não importa que a maioria esteja sem procurar. Estar sem procurar é o resultado, é o imobilismo imposto pelas circunstâncias em que não pudemos procurar. Mas não é a natureza do ser. É por isso que quando as grandes massas sofridas estão, como eu chamo em Pedagogia da Oprimido, mais imersas do que emersas na realidade social, política e econômica, estão sendo proibidas de ser. Por isso é que elas ficam apáticas. A esperança não floresce na apatia. Cabe ao pedagogo, ao filósofo, ao político, aos que estão compreendendo a razão de ser da apatia das massas - e às vezes da apatia de si mesmos - a briga pela esperança. Eu não posso desistir da esperança porque eu sei, primeiro, que ela é ontológica. Eu sei que não posso continuar sendo humano se eu faço desaparecer de mim a esperança e a briga por ela. A esperança não é uma doação. Ela faz parte de mim como o ar que respiro. Se não houver ar, eu morro. Se não houver esperança, não tem por que continuar o histórico. A esperança é a história, entende? No momento em que você definitivamente perde a esperança, você cai no imobilismo. E aí você é tão jabuticabeira quanto a jabuticabeira.
Gadotti - A esperança é uma marca, é a expressão ontológica do ser humano?
Freire - A esperança é uma invenção do ser humano que hoje faz parte da nossa natureza que se vem constituindo histórica e socialmente. Ou seja, a esperança é um projeto do ser humano e é também a viabilização do projeto. Por isso é que os ditadores, tanto quanto podem, aniquilam a esperança das massas. Ora sob o susto, o medo, o pavor. Ora sob o assistencialismo. Eu não sou contra a assistência, porque não é possível você ver um homem morrendo e dizer que não dá pão porque é assistencial. Isso está errado, é um crime. O que não podemos ser é assistencialistas, quer dizer, transformar a assistência em uma estratégia. Mas como tática é absolutamente válida.
Gadotti - O que há de novo no novo livro e o que permanece de Pedagogia do Oprimido?
Freire - Permanece um monte de coisas. Além da crença, da esperança, permanece o respeito e a convicção da importância do papel da subjetividade. Quando os marxistas - e também os não-marxistas - de natureza de pensar puramente mecanicista me criticavam nos anos 70, me acusavam de ser idealista, kantiano, na melhor das hipóteses de neo-hegeliano, por causa de minhas propostas de conscientização que entravam em choque com aquelas idéias de que a superestrutura condiciona a consciência. Hoje estamos vendo emergir a crítica segura e séria a esse mecanismo de origem marxista, que não foi competente para explicar o próprio papel de sua luta contra o projeto capitalista - luta na qual anulou a presença do indivíduo, o gosto do indivíduo, o medo do indivíduo, o prazer do indivíduo.
Gadotti - Então você continua criticando esse mecanicismo que sustenta a tese da inexorabilidade do homem e de que há uma sucessão na história que inevitavelmente levará ao socialismo?
Freire - Claro. Veja como há uma contradição enorme nessa inexorabilidade: brigava-se pela inexorabilidade. Se a coisa vem de qualquer maneira amanhã, por que eu vou morrer hoje lutando por ela? Vou esperar. Esse mecanicismo deveria inclusive conduzir à apatia. E está provado que não é assim.
Gadotti - Veja que coisa engraçada: você diz na Pedagogia da Esperança que "a luta de classes não é o matar da história, mas certamente é um deles". Você, que foi criticado na Pedagogia do Oprimido por não usar a expressão luta de classes, sabe que agora vai ser criticado porque está usando?
Freire - Isso é interessante. Sabe um dos riscos que a gente vai enfrentar no começo do milénio - e já está enfrentando hoje? E que muita gente de esquerda ficou de tal maneira inquietada com a queda do Muro de Berlim, que perdeu parâmetros e se sente imobilizada. Essas pessoas estão aturdidas diante da história precisamente porque pensavam que o amanhã era inexorável, e não tiveram tempo de se reconstruir e de se repensar.
Gadotti - Mas quais são esses riscos ?
Freire - Primeiro, de uma minoria dessas pessoas conseguir chegar ao poder e reativar em si, odientamente, o gosto stalinista. O segundo risco é de alguns desses que estão impactados caírem num imobilismo tal que passem a acreditar no discurso neoliberal de que a luta entre as classes sociais se acabou, de que a ideologia se acabou, de que a história se acabou. Esse segundo grupo constitui um perigo enorme para a própria progressividade, termina por dar força à maioria de direita e à minoria de esquerda que pretende reativar o stalinismo. Um terceiro risco que estamos correndo no começo do milênio em face de todo esse desarranjo histórico é exatamente o poder do neofascismo, que se assanha sobretudo na Europa, mas também no Terceiro Mundo (seja o surto de neonazismo em São Paulo, essas ameaças de fuzilar nordestinos, esse racismo de direita). É uma ameaça assustadora, que é de natureza material mas sobretudo espiritual, ideológica - o que não se via anteriormente. O educador não pode estar distante dessa preocupação. Isso tem que estar sendo discutido nas classes primárias, com linguagem de menino.
Gadotti - Você também tem se preocupado bastante com o sectarismo, não é?
Freire - Em Pedagogia da Esperança, eu retomo e avanço um pouco em relação à Pedagogia da Opressão, em que eu já havia feito a crítica do sectarismo. Lá, eu era radical e não sectário. Hoje eu me acho mais radical - e mais longe ainda da sectarização. Foi a experiência histórica, e portanto política e social, me ensinando que eu teria de me convencer de não estar mais tão certo de minhas certezas. Essa certeza da incerteza, da busca da incerteza, em vez de matar em mim a aventura da esperança, me levou mais para a aventura da esperança. Quer dizer, no momento em que eu descubro que não posso estar mais tão certo de minhas certezas, tenho a esperança de descobrir um pouco de luz na incerteza. Então, eu fico mais curioso, mais indagador, mais competente. E isso me levou necessariamente a ficar mais não-conciliador; de compreender o diferente, e não de negá-lo.
Gadotti - O que significa respeitar a diferença? É simplesmente, tomo diz a ideologia burguesa, respeitar o pobre, respeitar o negro...?
Freire - Trata-se de entrar na pele dele e aprender também.
Gadotti - No livro A Filosofia Mestiça (Nova Fronteira), que é fantástico, o educador francês Michel Serres afirma que todos nós somos mestiços e que não há nenhuma educação se não conseguir compreender - mais que compreender, assimilar - uma outra cultura que não a sua. Você concorda?
Freire - A posição que eu chamo substantivamente democrática parte pare compreender a necessidade. Não é como um favor. Eu tenho a necessidade de compreender um diferente de mim, se eu quiser crescer. Portanto, a minha radicalidade fenece no agora, Gadotti, momento em que eu me nego a compreender o diferente de mim. Segundo, quando eu compreendo o diferente descubro que há um diferente diferente, que há um diferente que é antagônico. Ou seja, ele é tão diferente de mim que não dá para dialogar comigo em termos profundos. Mas ao descobrir a possibilidade da existência do antagônico, que é o diferente mais radical, eu descubro também que até com o antagônico eu aprendo. E que, portanto, não posso me fechar sectariamente. No fundo, a minha briga não é contra contra os outros; é contra mim mesmo, no sentido de não me permitir cair na sectarização. E a sectarização é a negação do outro, é a negação do contrário, é a negação do diferente, é a negação do mundo, é a negação da vida. Quer dizer, ninguém pode continuar vivo se sectariza. Veja como o stalinismo era a antivida, como o nazismo é antivida. E a democracia só se autentica quando é vida. E esta só é vida quando é móvel, quando tem medo. É preciso se abrir ao máximo, às emoções, ao riso, aos desejos, inclusive a essa antivida que é o cientificismo. O cientificismo é uma antivida porque esse sonho de uma rigorosidade absoluta contra a não-rigorosidade do saber é a negação da vida também.
Gadotti - Na Pedagogia da Esperança você aborda a questão da mulher, da armadilha que a linguagem nos coloca, por exemplo, quando afirmamos que os homens fazem a história, ou quando, para nos defender diante de certas perguntas que as mulheres nos fazem sobre o uso da linguagem, nós afirmamos que, quando falo em homem, a mulher necessariamente esta incluída. Como sair dessa armadilha?
Freire - Em primeiro lugar, a gente tem de reconhecer que a linguagem é uma produção social, com uma presença individual nessa produção social. Segundo, é precisamente por isso que a linguagem é corpo ideológico. Não é possível pensar em linguagem sem ideologia e sem poder. Terceiro, a própria gramática nasce historicamente como uma regulamentação do poderoso, de quem tem poder. Nas culturas machistas, evidentemente que a linguagem se amolda a esse machismo. Numa perspectiva progressista, é absolutamente fundamental que se reinvente também a linguagem, por que não é possível você democratizar uma sociedade deixando de lado um dos aspectos fundamentais do que fazer da sociedade, que é a linguagem humana. Num tempo de busca de igualdade, de superação das ideologias restritivas, não é possível permanecerem sintaxes proibitivas da mulher. Certa vez, falando a um auditório onde havia 1500 mulheres, de repente olho e vejo a cara de um homem e digo: "Todos vocês". Isso não é gramática. Isso é ideologia. Eu tenho que dizer "todas vocês" mesmo. Eu falo nesse livro que é possível que alguém diga que a invenção da linguagem, antes da invenção das estruturas sociais, era puro idealismo. Não é. No momento em que você não pensa a história como determinismo, mas como possibilidade, a reinvenção da linguagem faz parte da reinvenção do mundo. Então, você pode até começar pela briga da reinvenção da linguagem.
Gadotti - Nos Estados Unidos, já é comum referir-se aos negros não como nigger, mas como african american. É uma forma de começar a falar politicamente correto, não é?
Freire - Concordo. Mas o que você enfrenta de obstáculos quando faz isso... E sabe qual é a minha resposta? Prefiro enfeiar o meu discurso a fazê-lo mais bonito mas inautêntico do ponto de vista político. E acho mesmo que o feio aí vira esteticamente bonito, porque iluminado pelo acerto político.
Gadotti - Essa questão se liga a uma outra armadilha de linguagem, que você trata no livro Professora Sim, Tia Não. Você diz na página 25: "A tentativa de reduzir a professora à consição de tia é uma inocente armadilha ideológica em que, tentando se dar a ilusão de adocicar a vida da professara, o que se tenta é amaciar a sua capacidade de luta ou entretê-la no exercício de tarefas fundamentais ". O que quer dizer com isso?
Freire - Que não se deve tirar da professora o dever de ela ser professora, o dever de querer bem, de amar não apenas o menino, mas o próprio processo de que ela faz parte como um dos sujeitos, que é ensinar, que é formar. O que é preciso é que ela saiba que, quando a chamam de tia, no miolo desse tia o que existe, nem sempre lucidamente para a diretora da escola, é o seguinte: tia não pode fazer greve. Quanto mais você reduz a profissionalização a uma amorosidade parental, tanto menos a professora terá condições de brigar. Pelo menos é o que a ideologia espera. Digo também que ela pode gostar de ser tia e pode preferir continuar a ser chamada de tia. Nada contra isso. Mas é preciso que saiba o que há de manha ideológica quando chamam você de tia.
Gadotti - Outro preocupação manifestada no livro é com relação à identidade cultural das crianças, que a escola ignora. Diante desse sistema que coloca uma única idéia de cultura, um currículo monocultural, o que pode fazer um professor em sala de aula para transformar essa escola e esse currículo?
Freire - Um grande número de professoras e professores se sente absolutamente manietado dentro de uma administração autoritária. Esse tipo de administração estimula as professoras a virar tias, o conceito pelo qual elas explicam ou se acomodam ao imobilismo que o autoritarismo espera delas. Mas acho que é possível fazer educação popular na escola. Claro que uma coisa é você nadar a favor da correnteza e outra é nadar contra. Se você tem uma administração aberta, democrática, você nada a favor da corrente quando defende uma série de posturas político-pedagógicas abertas. E nada contra o corrente, quando o conceito de participar é proibido, é um pecado. Então fica difícil você defender a participação e sobretudo viver a participação. Mas que é possível, é.
Gadotti - O que você faria, como professor, na sala de aula?
Freire - Uma das coisas que a professora deveria fazer, por exemplo, para compreender a cultura multiculturalmente. é comentar com os alunos as diferenças e dizer que, quando você discute tal coisa do conteúdo do programa, essa coisa não é universal, ela tem suas dimensões regionais, até de família, e entra aí o problema de classe. A cultura de classe existe. A linguagem de classe existe. Há uma sintaxe que é da classe trabalhadora e outra que não é. É preciso saber como você reinventa a linguagem, compreendendo a diversidade dessas sintaxes, como consegue recriar a linguagem de forma correta. E como professor você pode testemunhar diariamente a sua postura e aí compreender muito bem a relação dialética entre tática e estratégia. Quer dizer, você tem o sonho estratégico, que é o da multiculturalidade, mas tem que ter táticas para falar dele, porque você pode cair nos exageros do discurso - que são idealistas, voluntaristas - e você pode perder o emprego. E a questão sua não é perder o seu emprego; é manter o emprego e ajudar o seu sonho. Acho que não há fórmulas para isso. Você tem que recriar todo dia as suas táticas para superar o exclusivismo de uma compreensão cultural estreita.
Gadotti - A experiência vivida na Secretaria da Educação te deu ma impulso danado para escrever. Quais são seus planos para os próximos 50 anos?
Freire - Quem me dera esses 50 anos... No momento estou escrevendo um livro de que gosto muito, que está cheio de afetividades, que vai se chamar Cartas a Cristina. É uma sobrinha que se correspondia comigo desde que era criança e eu estava no exílio. Um dia, recebi uma carta em que ela me dizia: "Até hoje conheci tio Paulo através de minha mãe, meu pai e minha avó. E agora que cheguei à universidade comecei a conhecer um outro Paulo, através de referências um pouco assustadas (estávamos ainda no Estado militar), não mais do tio Paulo, mas do professor Paulo Freire. E estou tão curiosa de saber sobre o Paulo Freire tio dos outros todos, e não só o meu, que queria pedir um favor: faça cartas para mim sobre sua vida, sobre sua infância". Achei fantástico e respondi que ia fazer.
Gadotti - E depois desse livro?
Freire - Tenho um sonho de fazer um ensaio sobre Amílcar Cabral (líder revolucionário que fundou o movimento de libertação da Guiné-Bissau e Cabo Verde, na África). Acho muito oportuno trabalhar um pouco isso. Num momento em que se pensa que nunca mais vai haver revolução, eu, pelo contrário, acho que vai haver. Não depois de amanhã e não igual às que já houve. A gente precisa compreender que a história não se acabou. O que está acabando é uma maneira de fazer história. Hoje a gente está começando a viver uma nova maneira de ser históricos, que é preciso que a gente perceba. Tudo que a gente puder fazer para esclarecer isso é dever fazer.
Gadotti - Falando em esclarecer, o que você diz das críticas que o atual secretário municipal da Educação, Solon Borges dos Reis, tem feito à administração anterior, da qual fizemos parte? Ele anunciou a desativação da Mova (Movimenta de Alfabetização de Adultas) porque tinha objetivos político-ideológicos. Ele também pretende trabalhar mais com a profissionalização, ao contrario de nós, que trabalhamos mais com a autonomia da escola e com participação - segundo o professor Solon, palavras associadas à pedagogia libertadora de Paulo Freire. Ele diz que vai enfatizar a pedagogia para a responsabilidade.
Freire - Devo sublinhar, em primeiro lugar, que o professor Solon tem o dever de procurar afirmar sua gestão de secretário na posição e na opção político-ideológica que ele tem, que o governo de que ele faz parte tem. Nesse sentido, ele é tão político quanto nós. Não existe neutralidade a que ele faz referência. Ele não é neutro. Ele está procurando canalizar a sua administração numa perspectiva não apenas pedagógica, mas numa opção político-ideológica que diverge da nossa, que é oposta à nossa. E é um direito que ele tem.
Gadotti - Aliás ele confessa isso quando diz que "os valores da administração do PT não são os valores que nós queremos para a educação".
Freire - Exato. No livro Política e Educação, há um texto sobre educação e responsabilidade, em que eu discuto a compreensão de responsabilidade associada à educação e enfatizo essa questão da opção da opção política, do responsável pela responsabilidade pedagógica. Defendo o direito de o professor Solon defender sua opção. Por isso eu também digo nesse texto que não é possível, rigorosamente, uma continuidade administrativa, quando acontece de uma administração conservadora seguir-se a uma administração progressista. Como é que eu, um educador que me considero progressista, posso continuar uma obra reacionária? E como é que um reacionário, um conservador, pode continuar uma obra progressista? Os aspectos puramente administrativos são pouquíssimos. Todo problema administrativo está iluminando e fundando uma questão política. Por exemplo, as prioridades são políticas, ideológicas.
Gadotti - Esse fato não reforçaria a idéia de que mais importante no fundo é fortalecer as propostas político-pedagógicas das próprias escolas, para que elas resistam um pouco mais à descontinuidade administrativa?
Freire - Acho que sim, mas isso também bate no poder político de quem tem a administração central. Por exemplo, como pode uma administração conservadora aceitar, primeiro, a própria idéia de autonomia da escola? Não pode, porque uma das características do conservantismo é exatamente a centralização do poder. Quando você pergunta o que é que significa a própria autonomia da escola, a resposta tem um ponto de partida político e ideológico. Não é uma pergunta puramente da ciência da administração, não é uma pergunta cuja resposta dependa da pedagogia. A prática educativa vai refletir um sonho político-ideológico de quem define a autonomia. Outra coisa: é absolutamente errada a idéia de que nós não fazíamos uma educação para a responsabilidade ou educação responsável. Só que a nossa responsabilidade se fundava noutros valores. A nossa responsabilidade tinha que ver, sobretudo, com a ontologia, com a qualidade de ser do ser humano. Quer dizer, eu sou responsável como educador com relação a esse núcleo básico que nos marca, que nos caracteriza - e que se constituiu histórica e socialmente e não a priori da história -, que é a vocação de ser mais. A minha responsabilidade é com isso. Por isso falo em ontologia. Eu sou responsável na minha prática educativa no sentido de ajudar-me e ajudar os outros a ser mais. E não é possível ser mais sem libertação. Então, a pedagogia da libertação é profundamente responsável.
Gadotti - Qual é a diferença entre a pedagogia da libertação e essa que está senda posto em prática?
Freire - A diferença entre ela e a outra que se diz responsável - e que é tão responsável quanto nós - é que a conservadora é responsável diante dos interesses dos dominantes. Agora, dizer que a que é responsável diante dos interesses dos dominantes é a única responsável é um absurdo. Como eu também não posso dizer que somos os únicos responsáveis. Mas eu tenho que distinguir em que ponto eu sou responsável. A minha utopia não é a utopia do conservador. O conservador quer conservar, por isso é reacionário - porque não é preciso conservar o que é legítimo luta-se para consevar o que é ilegítimo.
Gadotti - Que balanço você faria hoje do que foi feito na sua administração?
Freire - Não tenho um balanço, mas se você perguntar se eu estaria arrependido de alguma coisa, eu te diria que, apesar da legitimidade do arrependimento, eu não tenho nenhum. Eu faria de nova a mesma coisa. Quando nos juntamos para administrar a Secretaria, não pensamos que éramos os maiores educadores do Estado. Segundo, nenhum de nós pensou que por isso mesmo somente nós seríamas capazes de fazer alguma coisa positiva. Terceiro, nenhum de nós pensou que estávamos ali escolhidos por Deus para salvar a educação de São Paulo e depois a brasileira. O que sabíamos era que éramos capazes de fazer uma coisa séria e apostávamos, sem nenhuma falsa modéstia, que éramos capazes. E tínhamos opções políticas. Sabíamos, por exemplo, que defendíamos uma escola que, sendo pública, deveria tornar-se uma escola popular. E você. Gadotti, acrescentava que era preciso esclarecer o que é o popular: quando queremos que a escola pública se torne popular, eficaz, democrática, não estamos pensando em fazer uma escola ruim para os meninos que nasceram ricos. Estávamos convencidos de que devíamos fazer uma escola que, tendo o gosto, o cheiro do popular, não tivesse nojo da burguesia. A gente queria que essa escola tivesse a cara brasileira, portanto uma escola aberta, feliz, crítica, que provocasse a criatividade dos meninos e não o medo. Para isso, precisávamos de uma administração que fosse assim também. Não é possível pensar no sonho democrático da escola tendo uma administração autoritária.
Gadotti - Por isso você promoveu mudança, nos estruturas de poder da Secretaria?
Freire - Fizemos uma mudança estrutural. na qual o secretário perdeu possivelmente 60% do puder arbitrário que tinha. Eu não podia mais nomear nem uma secretária de escola. Vinham as indicações das bases. Se não se arrebentar com aquele gosto colonial de administrar - em que cabia ao secretário dispensar até a professora que perdeu aula no mês de setembro do ano anterior -, não se pode falar na autonomia da escola. Procuramos os Conselhos de Escola, criados por Mário Covas em 1985 e arquivados por Jânio Quadros. Os Conselhos de Escola foram um salto extraordinário no servido da ingerência dos pais, dos alunos e das professoras frente ao poder central do diretor.
Gadotti - Você acha que esse gosto peta liberdade, pela autonimia, pela participação é uma marca deixada pela sua administração e que vai ficar?
Freire - Eu acredito nisso. Mesmo que esse gosto sofra momentos de abafamento, em que sente que não pode se expressar. Porque, afinal de contas, o gosto de vir a ser faz parte da ontologia do ser. Ninguém pode decretar que os homens e mulheres deixem de sonhar. Isso é negócio de ditador.
Disponível em: http://revistaescola.abril.com.br/formacao/paulo-freire-podemos-reinventar-mundo-entrevista-640706.shtml; http://revistagiz.sinprosp.org.br/?p=1749; http://www.cppnac.org.br/wp-content/uploads/2012/09/Cepis-site-roteiro-25-Entrevista-in%C3%A9dita-de-Paulo-Freire-%C3%A0-jornalista-Marta-Luz-da-R%C3%A1dio-Juazeiro.pdf. Acesso em: 14/03/2016.
Vídeo disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=Ul90heSRYfE. Acesso em: 14/03/2016.
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